DO VERDÃO Reunião com camiseta pirata: horas em que o jeitão informal mais atrapalha que ajuda (Crédito:Divulgação)

Jair Bolsonaro elegeu-se presidente vendendo-se como um homem de hábitos simples, que inauguraria um novo jeito de fazer política: com a força que o contato direto com o povo (por meio das redes sociais) lhe confere, ele seria capaz de rechaçar o jogo tradicional do poder. Antes mesmo de seu governo completar 50 dias de existência, ficou claro que isso servia como estratégia de campanha, apenas. Os hábitos simples, no contexto do Palácio do Planalto, transformam-se em sinal de desprezo pela seriedade do cargo. O uso sem filtros das novas tecnologias de comunicação resulta em quebra de protocolo, subverte a hierarquia (na medida em que permite que um simples vereador do Rio de Janeiro provoque a demissão de um ministro) e faz o governo parecer um reality show, em que as deficiências de caráter e as fragilidades dos participantes são escancaradas para quem quiser ver. Quanto à disposição de se apartar das práticas da política tradicional, fica claro que uma parte disso não passava de promessa vazia e a outra parte, quando de fato levada a cabo, descamba para o caos. O resultado é um governo atrapalhado, em que questões pessoais são colocadas acima de questões de Estado e com uma capacidade incrível de criar crises para si mesmo. Quem precisa de oposição, quando se pode produzir os próprios escândalos do zero?

A imagem que melhor capta esse clima foi registrada no Palácio da Alvorada, na quinta-feira 14, quando Bolsonaro apareceu de paletó emprestado, calça de moletom, camiseta falsificada do Palmeiras e chinelos ao lado de parte de seu engravatado gabinete ministerial. A foto foi feita ao fim de uma reunião sobre a reforma da Previdência, iniciativa fundamental para definir o futuro econômico do País. O desleixo não é apenas uma questão de aparências. O desprezo com o vestuário reflete-se também no desprezo com formalidades que serviriam para proteger o presidente. Foi o que ocorreu já no quarto dia de mandato, quando Bolsonaro afirmou que aumentaria a alíquota do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). Acabou desmentido pelo secretário da Receita Marcos Cintra: “Deve ter sido alguma confusão. Ele não assinou nada.”

Em janeiro de 2009, ainda nos primeiros dias do seu primeiro mandato presidencial, o americano Barack Obama revelou que seus assessores queriam tirar o seu celular para impedi-lo de usar o Twitter. “Eles vão ter que arrancá-lo da minha mão”, disse Obama. Mas ele reconheceu que o uso da rede social poderia causar problemas tanto legais, quanto para o seu esquema de segurança. Depois veio Donald Trump e a Casa Branca nunca mais conseguiu controlar os impulsos digitadores dos polegares presidenciais. Mas isso tem um custo: o presidente americano vive saltando de escândalo em escândalo, de crise em crise com o Congresso. A diferença é que, lá, o sistema político é bipartidário e ele tem o respaldo bastante coeso do seu partido. No Brasil, a política parlamentar é um pandemônio. Não dá para Bolsonaro imitar Trump.

Assim como não dá para os ministros de Bolsonaro imitá-lo na falta de compostura, como vem acontecendo. Já bastam os rolos judiciais e investigações de corrupção em que alguns deles estão envolvidos. Dos 22 ministros, sete são criticados por declarações infelizes — algumas absurdas — ou porque aceitaram os cargos mesmo diante dos problemas legais que enfrentam. A mais pródiga em desatinos é Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Ela se posicionou contra o feminismo e o que chama de “ideologia de gênero”, defendendo que meninos vistam azul e meninas, rosa. Quando surgiu um vídeo de 2013 em que afirma, falsamente, ter mestrados em educação, direito constitucional e de família, ela justificou que os títulos estavam de acordo com uma “perspectiva cristã”. Foi acusada também de adotar uma criança indígena e de divulgar um documentário enganoso.

Bronca pública

No quesito bobagens em série, o colombiano Ricardo Vélez Rodríguez, ministro da Educação, compete com Damares. Ele chamou os brasileiros de canibais em uma entrevista e defende que os livros de história celebrem o papel da ditadura contra o comunismo. Defensor da Escola Sem Partido, logo que assumiu o MEC lançou uma portaria permitindo que livros didáticos usassem dados sem citação de fonte. A medida foi revista. Depois, afirmou não crer que a universidade deveria ser para todos, mas para uma “elite intelectual”. Também levou uma bronca pública da mãe do cantor Cazuza, por ter lhe atribuído erroneamente uma frase maldosa. Ao usar seus cargos como palanque para filosofias de vida discutíveis e valores morais ultrapassados, ministros como Damares e Vélez apenas criam confusão para o governo, sem contribuir em nada para a solução dos problemas nacionais.

Ainda mais constrangedores são os problemas que alguns ministros enfrentam com a Justiça. Até ser acusado de apropriação de verbas públicas de campanha do PSL em Minas Gerais, o ministro do Turismo Marcelo Álvaro Antônio era um quadro discreto no gabinete de Bolsonaro. Nas últimas semanas, tornou-se pivô de mais uma crise, ao lado do presidente do partido, o deputado federal Luciano Bivar (PE). Álvaro Antônio deve ter que se explicar ao Ministério Público e pode perder o cargo, assim como ocorreu com Gustavo Bebianno. Com uma diferença: o secretário-geral da Presidência perdeu o cargo não pelo envolvimento com candidaturas de laranjas, mas por ter trocado farpas com o filho do presidente, o vereador carioca Carlos Bolsonaro. Há também rolos antigos assombrando os ministérios. Onyx Lorenzoni, da Casa Civil, admitiu ter recebido R$ 100 mil não declarados da empresa JBS para a campanha de 2014. Ele se desculpou e ficou por isso mesmo. Bem menos conhecido, o ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta responde a um inquérito. Quando secretário de Saúde de Campo Grande (MS), ele teria contratado uma empresa para instalação de um sistema eletrônico que foi pago sem ser concluído. Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, é alvo de inquéritos por improbidade administrativa e fraude no tempo em que era secretário do governo do estado de São Paulo. Já o chanceler Ernesto Araújo está promovendo uma devassa ideológica no Itamaraty, ao mesmo tempo em que espalha aos quatro ventos teorias tresloucadas que fazem dele um Policarpo Quaresma da política externa.

Van para que te quero

A ala tresloucada e a ala enrolada do núcleo problemático do Poder Executivo — sim, porque é preciso reconhecer que nos ministérios da Justiça, da Economia e nas pastas ocupadas pelos militares ainda se procura manter a compostura — têm em comum a atitude de indiferença em relação às críticas que a sociedade faz a respeito de suas declarações e aos pedidos de explicação sobre seus problemas com a Justiça. Mas também nisso eles bebem do exemplo do presidente, que não aceita escrutínio público. Um dos questionamentos é sobre as duas vans que Bolsonaro possui entre seus bens pessoais, segundo declarou à Justiça Eleitoral. Cada uma tem capacidade para 16 passageiros. No Rio de Janeiro, o transporte urbano clandestino de passageiros é uma atividade econômica ilegal muito comum. Se não houvesse nada de errado, não custava nada explicar que uso Bolsonaro dava aos veículos. O governo não comenta o assunto. Deveria.