Governo estuda reajustar Bolsa Família em meio a alta de alimentos, diz ministro

Governo estuda reajustar Bolsa Família em meio a alta de alimentos, diz ministro

""AEm entrevista exclusiva, titular do Desenvolvimento, Wellington Dias, diz que medida é avaliada diante da alta dos preços de alimentos e que espera menos beneficiários "porque as pessoas estão superando pobreza".As próximas semanas serão intensas para o ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), Wellington Dias. A partir desta semana, sua pasta planeja atrair mais países para a Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza durante a primeira reunião da iniciativa em Roma. O projeto foi lançado em novembro do ano passado durante a cúpula do G20, então presidido pelo Brasil.

Ao mesmo tempo, Dias prepara um relatório sobre sua pasta para apresentar ao presidente Lula até março. É nesse documento que estará uma das decisões mais relevantes desde que o ministro assumiu o cargo, há dois anos: sobre uma mudança no valor repassado aos beneficiários do programa de transferência de renda Bolsa Família, cartão de visitas do governo federal.

"O problema é o preço do alimento, que teve essa elevação brusca do fim do ano passado para cá", admite Dias, em entrevista exclusiva à DW na sede do ministério, em Brasília (DF).

O ministro se refere e à inflação de pouco mais de 8% do custo da comida no Brasil em 2024, segundo dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no último dia 10 de janeiro. A elevação geral dos preços (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo, IPCA) foi de 4,8%.

"Vamos tomar uma decisão dialogando com o presidente, porque isso repercute. Será um ajuste? Será um complemento na alimentação?", pergunta, para, então, admitir que mexer no valor do repasse "está na mesa".

A seguir, trechos da conversa que a DW teve com Wellington Dias na última terça-feira (04/02), em Brasília.

DW Brasil: Que lugar o Bolsa Família ocupa no projeto que o Brasil apresentou, durante o último encontro do G20, para erradicar a fome e a pobreza?

Wellington Dias: Em 2015, o mundo pactuou o objetivo de chegar a 2030 sem fome e sem pobreza. Mas coisas pioraram: ali, eram 600 milhões de pessoas em insegurança alimentar no planeta. Em 2022, esse número já estava em 750 milhões. Foi por isso que, no G20, o presidente Lula reforçou que, sem a ajuda dos países desenvolvidos, não será possível avançar nesse sentido.

Agora, em Roma, vamos tentar alcançar outros países e, em paralelo, olhar para a cesta de experiências dos países da aliança que deram resultados. O Bolsa Família é uma delas. Já está comprovado que transferência direta de renda é eficiente, porque a integração da política social com a econômica tira as pessoas da pobreza e as leva à classe média. Não é à toa que, hoje, mais da metade dos lares brasileiros está na classe média [estudo da Tendências Consultoria divulgado em janeiro avaliou que 50,1% dos domicílios brasileiros tiveram renda superior a R$ 3.400 por mês em 2024, o que faz com que sejam parte das classes A, B e C].

Mas, em 20 anos, o número de beneficiários do Bolsa Família aumentou quase seis vezes. Parte dessa elevação aconteceu, inclusive, nesses últimos cinco anos. Por que isso aconteceu?

Porque no golpe que afastou a presidenta Dilma [Rousseff, em 2016], os programas sociais do país foram todos desmontados. Logo em 2017, se você notar, a fome voltou a crescer, junto com a miséria, o desemprego. E isso se agravou na pandemia – com a falta de um plano para lidar com aquela situação. A consequência foi a ampliação da pobreza.

A elevação do Bolsa Família é efeito dessas coisas, então?

Sim. E, mesmo assim, no final do ano passado nós teríamos 27 milhões de famílias no Cadastro Único [CadÚnico], beneficiárias do Bolsa Família, se a gente não modificasse o modelo…

Hoje são 20,8 milhões de famílias.

É um número elevado? É. Mas veja: só no combate às fraudes, tiramos cerca de 4 milhões de benefícios eleitoreiros e irregulares. Tinha desde gente com documento falso até beneficiário com renda de 2 mil dólares por mês. Não era razoável.

Por outro lado, alcançamos cerca de 5 milhões de famílias que, aí sim, estavam passando fome e não conseguiam acessar o programa. Muitas pessoas passaram a ter um misto de recursos da nossa transferência de renda com um salário de trabalho. Eu estou bastante animado com esse caminho de saída da miséria pelo emprego e pelo empreendedorismo. A tendência é de redução.

Do número de beneficiários do programa?

Sim. Estaríamos colocando, hoje, R$ 214 bilhões no Bolsa Família, embora o planejamento [de 2023] fosse [um orçamento de] R$ 175 bilhões. Mas, por causa desse esforço de combater fraudes, fechamos o ano passado com R$ 168 bi e, em 2025, está programada mais uma economia de pelo menos R$ 4 bilhões. A maior parte disso não virá sequer do combate à fraude, mas porque as pessoas estão superando a pobreza. Estão se formando, se qualificando, empreendendo.

Mas o que alicerça essa expectativa de redução?

O Brasil segue crescendo, apesar de todo o pessimismo. A gente [governo] precisou fazer um forte programa para o equilíbrio fiscal, fechamos o ano passado com um volume de receitas muito próximo do das despesas, além do salto positivo nas reservas cambiais. [A projeção atual do governo é de que] O país cresceu 3,5% em 2024 e eu acredito que vai dar algo entre 3,5% e 4% nesse ano. Tem mais gente empregada, houve um aumento de 11% na renda real [em 2023] e que chegou a 38% nos rendimentos dos mais pobres. Essa roda positiva da economia gera desenvolvimento econômico e social.

O país registra inflações acima da meta há dois anos. Em 2024, o IPCA foi de 4,8%, mas o objetivo era fechá-lo em 4,5%, no máximo. Agora tem o debate sobre a elevação do preço da comida. Com toda essa pressão econômica, vocês avaliam reajustar o valor do Bolsa Família?

Quando eu recebi o mandato, a inflação estava entre 12% e 14% [em janeiro de 2023, quando assumiu o cargo, a inflação acumulada do ano anterior havia sido de 5,79%, segundo o IBGE]. Já houve uma redução. Além disso, se a meta era 4,5% e fechamos em 4,8%, ficamos praticamente na meta, né? A grande mudança é que o Banco Central volta à sua missão de controlar inflação e juros. Não podemos permitir ataques especulativos ao câmbio como aconteceram para justificar aumento de juros. É como se o Banco Central estivesse fazendo o contrário do seu papel. Agora, a [nova] direção do banco adotará as medidas. Já estão tendo efeito.

Mas vocês consideram esse reajuste?

Temos que preparar, entre fevereiro e março, um relatório ao presidente. O principal problema já não é o câmbio. Temos que manter [o benefício no piso de] 40 dólares, que é o padrão internacional para o consumo. Nisso haverá pouca alteração. O problema é o preço do alimento, que teve essa elevação brusca do fim do ano passado para cá. É um ponto fora do planejado.

Como nós trabalhamos com a perspectiva de um ano inteiro, vamos ter que reunir todo mundo da Caisan [Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional, administrada pela pasta] para tomar uma decisão dialogando com o presidente, porque isso repercute. Será um ajuste? Será um complemento na alimentação?

O reajuste está na mesa, então?

Está na mesa. A decisão vai ser tomada até o final de março.

Apesar do prestígio do Bolsa Família, especialistas ouvidos pela DW nos últimos tempos apontam ajustes que o programa precisaria ter. Dois exemplos: no desenho do piso per capita, apontado pela economista Laura Machado, do Insper, e no dispositivo de transição para o mercado de trabalho – a chamada de Regra de Proteção. Para o senhor, o que precisa ser ajustado neste momento no programa?

Quando nós aprovamos o novo Bolsa Família no Congresso, em março de 2023, já foram feitas modificações. Uma foi a renda básica da cidadania, que está na Constituição. Está estipulado lá um valor mínimo para quem ganha mais ou menos 40 dólares per capita, que são os cerca de R$ 240 que a gente dá. Mas esse valor tem outro efeito: garante energia para estudar e para trabalhar.

O resultado é que o desemprego e a informalidade estavam crescendo no Brasil e, nesses dois últimos anos, 18 milhões de brasileiros do CadÚnico passaram a ter um contrato de trabalho – parte deles em vagas temporárias, mas muitos em empregos permanentes.

Efeito da Regra de Proteção?

Antes, muita gente não queria ter carteira de trabalho assinada com medo de ficar sem o benefício. Quando perdia o emprego, a pessoa voltava para a fila [do Bolsa Família]. Hoje, ao contrário, se preenche os requisitos, a gente atende. Mas nossa aposta é em uma redução cada vez maior do número de benefícios em razão da empregabilidade e, mais do que isso, no fato de muita gente estar indo para o empreendedorismo.

Quanto mais isso acontece, maior é a inclusão socioeconômica. E a modificação que fizemos agora também vai muito na linha do combate à fraude. Nós conseguimos cruzar 1,7 petabytes de dados de municípios, estados, do setor privado, que permitem mais eficiência nessa busca, e estamos caminhando para ter um controle de biometria de beneficiários tanto o Bolsa Família quanto no Benefício de Prestação Continuada [BPC].

Já está funcionando?

Já. Tem uma integração com o Dataprev [Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência] que trouxe para nosso cadastro um total de 18 milhões de biometrias da nova carteira de identidade. E tem essa novidade que o presidente Lula lançou no final do ano passado: o Programa Acredita, um primeiro alicerce para esse público empreender.

Terá um fundo garantidor federal que retira a necessidade de a pessoa ter avalista ou possuir um bem para conseguir pedir crédito. São várias linhas de financiamento, que começam com R$ 21 mil, passam por R$ 80 mil e chegam até R$ 1,2 milhão. É uma perspectiva não somente de tirá-la da fome e da miséria, mas de alçá-la à condição de classe média.

É pensar o Bolsa Família como base não apenas para tirar pessoas da miséria, mas também para que sejam empreendedoras?

Eu diria que é um oxigênio enquanto a pessoa aprende e ganha condição de respirar sozinha. Garante uma ajuda. O Brasil é uma referência para o mundo em políticas integradas com saúde, educação, trabalho e, agora com empreendedorismo.

Porém, dados do próprio ministério avaliados por consultorias apontam que há 10 milhões de beneficiários que estão trabalhando e, mesmo assim, estão em situação de pobreza ou de extrema pobreza. O que fazer com esses casos?

Para uma pessoa entrar no programa Bolsa Família, a renda dela – dentro do orçamento da família – precisa ser menor que R$ 218, que é um patamar de miséria. Mas, se o objetivo é combater a fome e superar essa condição, não dá para abandonar a pessoa só porque ela saiu da miséria [com um emprego]. Isso explica, em primeiro lugar, por que temos beneficiários que acumulam o dinheiro do programa e a renda de trabalho.

Mas imagina um empregado que, com os descontos da CLT, recebe um salário de R$ 1,2 mil e que vive em uma casa de seis pessoas. Quando você divide essa renda, dá R$ 200 para cada um. É o patamar para ser aceito no Bolsa Família.

É por isso que temos que olhar para cada membro da família. Se um segundo membro da casa arruma um trabalho, por exemplo, daí significa que essa família está saindo da pobreza.

A pessoa sai do programa, mas segue no cadastro. O modelo que temos hoje ajuda a reduzir a informalidade, porque na época do Auxílio Brasil, quem recebia o benefício e, de repente, passava a ter uma assinatura na carteira, perdia tudo. Agora não. Todo mês, cerca de 150 mil pessoas saem da pobreza no Brasil.

Nesse ritmo, parte desses 10 milhões que você mencionou vão sair ainda este ano dessa situação, até porque temos 9 milhões de pessoas que estão se qualificando para emprego ou empreendedorismo. São cursos para quem quer abrir um restaurante, para o agricultor, um motorista que quer trabalhar com aplicativo, mas também para quem quer cursar medicina, engenharia etc. Queremos uma saída segura do programa.

O Programa de Aquisição de Alimentos, que muitos especialistas apontam ser essencial para mudar o panorama da insegurança alimentar no país, tem um orçamento muito pequeno (R$ 1 bilhão em 2024). Dá para mudar esse quadro?

Ele é um primeiro passo na política de segurança alimentar. O maior programa é, na verdade, a alimentação escolar, e daí, se a gente considerar estados, municípios e União, o orçamento é de cerca de R$ 15 bilhões.

[O PAA] é um complemento alimentar feito com base no cruzamento de dados que fazemos com a rede de saúde avaliando as condicionalidades do Bolsa Família. Assim, é possível detectar quantas pessoas estão desnutridas, mas também entender se a desnutrição é causada por algo momentâneo, de saúde, ou se é por falta de alimento. Se for essa segunda situação, aí a pessoa vem para o Bolsa Família.

Mas nosso objetivo é não ter ninguém nem precisando da transferência nem do programa de alimentação. Agora, por exemplo, a gente vive esse desafio do aumento do preço da comida…

O ministério não apareceu ainda no debate sobre isso.

É porque nós somos discretos (risos).

O que vocês têm feito nesse sentido, então?

Nós coordenamos a Caisan, essa câmara formada por 24 ministérios responsável por planejar anualmente a quantidade de alimentos que o Brasil vai exportar. É certo que quanto mais exportação, melhor, mas isso deve ser feito com algum cuidado. Nosso trabalho é analisar a necessidade de alimentos do país para não exportar mais do que pode.

Vivemos crises recentes, com aumentos dos preços dos derivados do milho, das frutas, do café, porque o país exportou mais do que podia. Daí tivemos que comprar milho e café de outros países, e isso impactou o mercado interno. Em 2023, nós conseguimos lidar com a armazenagem [de alimentos] na rede pública. A Conab [Companhia Nacional de Abastecimento] também aproveita o período de safra para comprar alimentos, protegendo o produtor de uma queda brusca [do preço].

Lá na frente, quando tem um ataque especulativo ou uma subida, a gente libera esses estoques para proteger o consumidor, evitando o aumento do preço. Em 2025, vamos alcançar um bom patamar dessa equação. No ano passado, por exemplo, nós precisamos importar arroz. Em 2025, a produção ampliada em várias regiões vai garantir um equilíbrio no preço dele.

Mas foi apenas isso que impactou o preço da comida?

Alguns itens, como o café, por exemplo, são desafiadores. Ele entrou agora em um mercado gigante, da China, da Índia, viu a demanda crescer. É isso: o principal fator de aumento do preço do alimento foi a elevação da demanda. Por quê? Porque a economia cresceu e elevou a renda. Mas eu vejo que já nesse primeiro semestre haverá queda da inflação da comida, embora a gente esteja preocupado com os combustíveis.

E qual é o papel do Programa de Aquisição de Alimentos nisso?

Ele foi alterado agora. O Ministério do Desenvolvimento Agrário está trabalhando conosco para oferecer alimento acessível a um preço adequado. O que a Conab compra, por exemplo, precisa ter essa venda direta facilitada, seja para o comércio, para supermercados grandes e para aqueles pequenos, das periferias, nos lugares onde os mais pobres estão. O efeito disso será um preço mais estabilizado.

Tem desafio da carne também, por causa da demanda internacional, do óleo, que é usado para o biodiesel e para a mistura com a gasolina, que termina tendo o dólar como referência. Precisamos ver como lidar com esse problema.