O Ministério da Saúde quer recontar as mortes por covid-19, alegando óbitos a mais por outras doenças. Na avaliação da cúpula da pasta, Estados e municípios estariam manipulando informações para se beneficiar de recursos federais. Já cientistas brasileiros afirmam o oposto: o número de vítimas é muito maior e essa mudança de discurso, aliada à alteração na metodologia de divulgação e na omissão de dados, seria manobra para se criar a falsa sensação de que a doença já estaria sob controle.

Ontem, pelo quarto dia seguido, o governo deixou de publicar dados por volta das 19 horas. O boletim só saiu às 22 horas: mais 904 óbitos e mais 27.075 contaminações – os números gerais, de 35.930 óbitos e 672.846 infecções – deixaram de ser apresentados. Ainda neste sábado, o mais prestigiado ranking científico sobre a covid-19, da Universidade Johns Hopkins, nos EUA, deixou de apresentar dados sobre Brasil, após a mudança feita pelo governo. Mas depois voltou a compilar os dados do País.

A polêmica sobre a qualidade dos dados foi levantada ontem pelo futuro secretário da Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, Carlos Wizard, em entrevista a Bela Megale, de O Globo, em que apontava que o órgão vai recontar óbitos no Brasil porque os dados atuais seriam “fantasiosos ou manipulados” e as estatísticas deveriam ser reduzidas.

Indagado pelo Estadão, disse que o governo Bolsonaro não pretende “desenterrar mortos”. “O que pretendemos é rever os critérios dessas mortes”, comentou. Segundo ele, uma “equipe de inteligência militar” identificou sinais de fraude em dados prestados por Estados e municípios, mas evitou dizer quais e quantos. “Estão inflacionando os dados da doença.”

Wizard disse que a pasta levará o assunto “à esfera competente”, sem detalhar. “Temos uma equipe de militares trabalhando nisso, sob o comando do general Pazuello.” Na avaliação do futuro secretário, o governo “tem enfrentado quatro guerras, a da covid, a da economia, da informação e a da política.”

Procurados pelo Estadão, virologistas e epidemiologistas consideram quadro oposto. Nas contas de Domingos Alves, da USP em Ribeirão Preto, o número de mortes no Brasil seria 40% maior. “Sem ser alarmista”, diz o integrante da equipe Covid-19 Brasil. Levantamento da UFPel em 90 municípios, divulgado semana passada, aponta que só um em sete casos vai para estatísticas oficiais.

Alves explica que a subnotificação ocorre pelo atraso na contabilização dos óbitos, que pode levar uma semana. Outro problema é o excesso de mortes de síndrome respiratória aguda grave (SRAG). No ano passado, de 6 de março a 6 de junho, foram 359 mortes; em 2020, 7.676. Ou seja, grande parte dos casos pode ser de covid-19.

Pesquisador da Unicamp, Marcelo Mendes Brandão destaca outros aspectos. “Há pessoas que são infectadas, mas não vão ao médico. Outro problema são os casos de dados parados, esperando comunicação. Isso acontece porque falta o resultado do exame ou o hospital nem tem internet.” Brandão levanta dúvidas até sobre recontagem. “Não existe um banco de dados formal no Brasil: fora do DataSus, não há nada? Quais serão as métricas?”

Outra questão é a alteração na veiculação de dados pelo ministério. Na semana passada, o boletim passou das 19h para 22h. “Dizer que acabou matéria no Jornal Nacional (como afirmou Bolsonaro), não justifica”, afirma. “Transparência de dados é importante para estabelecer políticas públicas.”

Depois de retirar do ar por um dia o site que mantinha sobre a covid-19, o ministério atualizou a página só com informações básicas de recuperados, casos e óbitos em 24 horas. Os arquivos digitais que traziam detalhes de todo o histórico no País também foram apagados e não há informações a respeito.

A partir da mudança, Brandão vê risco de distorções entre o número total de casos informado no País e o índice de casos ativos – ou seja, o número de pessoas infectadas no momento. “O governo diz: ‘Olha, há muito mais casos sendo falados pelos secretários do que casos novos’. Isso pode servir para criar uma narrativa de que está tudo bem.” Eduardo Flores, virologista da UFSM, vê intenção de denegar a gravidade da doença. “Rever critérios das mortes, postergar a divulgação de resultados e Diminuir a transparência nos números fazem parte de uma atitude negacionista.”

Internações e testes. Domingos Alves observa que o número de casos está baseado nas internações hospitalares. De acordo com ele, existe um consenso internacional na área de saúde que aponta esse número como apenas 15% do total de infectados pelo vírus. Existiria, portanto, um contingente de 85% que não estaria sendo observado – outra distorção. No dia 5 de junho, o Brasil registrou oficialmente 654.771 casos. As pesquisas dos cientistas da rede Covid-19 Brasil indicam que, na realidade, teria 5.670.650.

É nesse ponto que o virologista Rômulo Neris, mestre em microbiologia pela UFRJ, cobra a realização de testes. “Aqui, geralmente só são testados casos graves/hospitalizados.” Para ele, sem uma testagem ampla não há como dimensionar a pandemia. O Brasil tem taxa de testagem de 29 a 13 vezes menor do que a da Alemanha, Itália, Estados Unidos e Coreia do Sul.

O biólogo Fernando Reinach, colunista do Estadão, vai além. “Se o governo quer usar esse tipo de método para diminuir o número de mortos é mais fácil proibir totalmente os testes no Brasil. Aí, o número de mortes confirmadas baixa a zero. Todos terão morrido de gripe ou insuficiência respiratória”, critica o especialista.

Diretor do Laboratório de Imunopatologia Keizo Asami (Lika), da UFPE, José Luiz de Lima Filho concorda que a mudança pode transmitir falsa sensação de controle. “Pode incentivar as pessoas a saírem de casa e retomar as atividades, o que não seria correto.” Para Lima Filho, não há critério técnico para reduzir a divulgação aos dados das últimas 24 horas, como vem defendendo o governo. “Vão excluir exames que demoraram alguns dias para sair. Na prática, cidades com falta de teste não vão mais ter mortes por covid-19 pelas contas oficiais.” O próprio ministério apontava até a semana passada mais de 4 mil mortes em investigação.

Projeção americana prevê 165,9 mil óbitos até agosto

A projeção do avanço do coronavírus no Brasil feita pela Universidade de Washington foi atualizada pela segunda vez ontem, e prevê 165,9 mil mortes pela covid-19 no País até 4 de agosto. A primeira estimativa, feita em 12 de maio, projetava 88 mil mortes.

O Brasil é o terceiro país no mundo com o maior número absoluto de mortes: são mais de 34 mil. Mas, se analisada a quantidade de mortes a cada 100 mil habitantes, o Brasil figura na 14ª posição (veja ao lado). “Parece que esse pessoal gosta de dizer que o Brasil é recordista em mortes (pelo novo coronavírus). Falta, inclusive, seriedade. Mortes por milhões de habitantes nem se faz”, reclamou Jair Bolsonaro anteontem, desconsiderando os casos de subnotificação.

Há ‘tentativa autoritária’ de dar invisibilidade a mortos

O presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), Alberto Beltrame, afirmou que há uma tentativa “autoritária, insensível, desumana e antiética” de dar invisibilidade aos mortos. Ele repudiou com “veemência e indignação” o que chamou de “levianas afirmações” do secretário Carlos Wizard sobre fraudes. “(Esquecer mortos) não prosperará. Nós e a sociedade brasileira não os esqueceremos e tampouco a tragédia que se abate sobre a nação”, completou.

Beltrame rebateu Wizard e disse que os secretários não são “mercadores da morte”. “Ao afirmar que secretários de Saúde falseiam dados em busca de mais ‘orçamento’, o secretário, além de revelar profunda ignorância sobre o tema, insulta a memória de todas aquelas vítimas indefesas desta pandemia e suas famílias”, afirmou.

“Wizard menospreza a inteligência de todos os brasileiros, que num momento de tanto sofrimento e dor veem seus entes queridos mortos tratados como “mercadoria”. Sua declaração grosseira, falaciosa, desprovida de qualquer senso ético, de humanidade e de respeito, merece nosso profundo desprezo, repúdio e asco”, afirmou.

Outras entidades

A possibilidade de recontagem dos números pelo governo Bolsonaro também provocou reações de outras entidades de fora da área da Saúde. O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz, disse em sua conta no Twitter que “Ministério da Saúde não adverte mais”. “Acéfalo e militarizado, presta-se ao papel de empoeirar e retardar informações sérias sobre a pandemia, apenas para satisfazer o apetite conspiratório do presidente e sua batalha pessoal contra a imprensa livre. Um perigoso e letal vexame.”

Estado com o maior número de casos confirmados e óbitos do País, São Paulo diz que “manterá os critérios para contabilização de casos e óbitos. “As divulgações levam em conta o número de casos e óbitos confirmados laboratorialmente por serviços devidamente aptos a fazer diagnósticos”, disse a gestão João Doria (PSDB).

Já o Conselho de Secretários Municipais de Saúde de São Paulo publicou uma nota de “repúdio” às declarações de Wizard. “A fala do representante do ministério demonstra ignorância e desconhecimento da complexidade do SUS.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.