O presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, declarou cinicamente que o arremedo de golpe militar que tentou apeá-lo do poder foi “um presente de Deus”. O cinismo fica por conta de que, com o “presente” que lhe caiu nas mãos, Erdogan aproveita-se da situação para colocar em prática todos os seus diabos do autoritarismo e transformar a vida do país em um inferno. A desproporcionalidade entre o levante e a repressão aos insurgentes e supostos conspiradores tem sido brutal. Os golpistas não somavam mais que seis pelotões (300 soldados) em Istambul e Ancara.

A resposta de Erdogan envolvia, até a quinta-feira 21, nada menos que 310 mortos e a prisão de aproximadamente dez mil pessoas, entre elas o general Akin Ozturk, acusado de comandar a sublevação. Mais: cerca de três mil juízes e 21 mil professores foram exonerados e outros 20 mil cidadãos, punidos. O estado de emergência foi decretado suspendendo as garantias constitucionaisMais ainda: Erdogan acena com o retorno da pena de morte, mas, nesse ponto, talvez tenha colocado fichas demais em seu blefe. Governantes europeus, entre eles a primeira-ministra da Alemanha, Angela Merkel, foram claros: se retornar a pena de morte (abolida em 2004) estará suspenso o processo de adesão da Turquia à União Europeia.

Por outro lado, no entanto, Erdogan sabe que tem um trunfo: o seu território é geograficamente estratégico para o combate ao terrorismo e socialmente útil no abrigo a refugiados (já acolheu 2,5 milhões deles). Esses pontos são moedas fortes para ele negociar a sua inclusão na UE. Em suma, não poderia ter havido uma tentativa de golpe mais oportuna para um déspota do que a intentona sofrida por Recep Tayyip Erdogan, que governa o país morando em um palácio com 1.110 cômodos e avaliado em US$ 656 milhões.

DEMOCRATA DA BOCA PARA FORA

Se há golpes que vêm para o bem, bem único e exclusivo de ditadores, esse é um deles, e não deve causar perplexidade o apoio popular imediato que Erdogan recebeu no país. Os turcos estão exauridos, de corpo e alma, com a instabilidade política que viveram desde os anos 1960, com a gangorra do poder oscilando entre civis e militares e culminando com a intervenção direta dos quartéis em 1997. O tempo andou, e em 2014 Erdogan foi eleito nas urnas. Democrata da boca para fora, o fato é que, assim que assumiu a presidência alçando ao poder o seu Partido da Justiça e do Desenvolvimento, ele deu início ao controle da mídia e a introdução de princípios do islamismo no ordenamento jurídico.

Como o destino político é muitas vezes irônico, foi por meio das mesmas redes sociais (WhatsApp, Twitter, Facebook, Instagram), as quais Erdogan tanto tenta censurar, que ele conseguiu mobilizar a esmagadora maioria dos turcos que saíram às ruas em sua defesa – não porque ainda o acreditem democrata mas, frise-se, estão cansados de golpes e contragolpes militares. A sua imagem virtual esteve nas mãos do povo na forma de celulares e, valendo-se do aplicativo FaceTime, Erdogan fez um pronunciamento à toda nação.

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Irônica política: desde que assumiu a presidência da Turquia, Erdogan vem tentando censurar as redes sociais. Pois foi justamente a elas que ele teve de recorrer para pedir a resistência da população
Irônica política: desde que assumiu a presidência da Turquia, Erdogan vem tentando censurar as redes sociais. Pois foi justamente a elas que ele teve de recorrer para pedir a resistência da população (Crédito:Stringer/Sputnik )

Ou seja: a mesma internet que mobilizou até as pedras e varreu ditaduras na chamada Primavera Árabe pode também se prestar a segurar no poder falsos liberais. É igualmente por meio das redes sociais que o maior adversário de Erdogan no exílio, o clérigo Fethullah Gullen, que vive na Pensilvânia, tece a sua oposição. Com a tentativa de golpe, claro que lhe sobraram acusações de conspiração e Erdogan abriu uma crise com o governo americano ao exigir a sua extradição.

O presidente dos EUA, Barack Obama, já repetiu diversas que “as investigações sobre Gullen serão feitas dentro da lei”, chamando indiretamente de ilegal o regime inaugurado agora na Turquia. Erdogan se faz de desentendido e não se constrange em ameaçar: ou os americanos lhe dão Gullen ou os seus aviões não mais decolarão de território turco para bombardear bases do Estado Islâmico, o que praticamente paralisaria as operações. Esteja ou não Gullen nos bastidores do golpe, isso não significa, em hipótese alguma, que os turcos estariam melhor sob seu comando e que a democracia se veria assegurada.

Gullen é tão autoritário quanto o seu rival, ambos são idênticos no delírio pelo mando e, se estivem juntos no governo, seria o mesmo que um louco ajudar um cego a atravessar a rua. Há analistas internacionais a afirmar que o próprio Erdogan é o líder máximo da conspiração, seguindo a tese do “fingir-se golpeado para reprimir a ferro e fogo”. Tudo isso nasce no clima fértil para teorias e mistérios que se formam em países como a Turquia, onde a transparência do governo é mínima e a tesourada na mídia é máxima. Uma coisa, porém, é certa: se a tentativa de golpe foi para Erdogan “um presente de Deus”, para o país e o mundo ela significou, em sentido figurado, um “presente de grego”.


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