30/06/2023 - 18:54
Como muitos brasileiros, acompanhei o julgamento da inelegibilidade de Jair Bolsonaro no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) como se fosse uma partida de futebol. Na sessão, vestindo a camisa da Justiça, estavam o relator Benedito Gonçalves, Floriano de Azevedo Marques, André Ramos Tavares, Cármen Lúcia e Alexandre de Moraes.
No time bolsonarista, Raul Araújo e Kassio Nunes Marques. O jogo terminou em goleada e vitória da Justiça: Brasil 5, golpistas 2.
Acho curioso constatar que conheço mais a escalação do TSE do que da Seleção Brasileira. Deve ser um sinal dos tempos – ou do fim dos tempos, expressão mais adequada quando tratamos da distopia bolsonarista.
Como jornalista há décadas, acredito que possuo um certo domínio sobre a língua portuguesa. Por isso confesso que ainda fico surpreso quando percebo que os juízes, no Brasil, não falam o meu idioma. Comunicam-se em um dialeto que lembra o nosso, algumas palavras são até as mesmas, vejam só. Mas a distância entre o que os togados sussurram nos tribunais e o que o povo fala nas ruas é tão grande que me pergunto se a vontade de impedir que a população geral entenda tudo o que falam é proposital. Na minha opinião, é. A razão para isso eu deixo para você, leitor.
Mesmo com dificuldade para acompanhar o voto inteiro, queria dar parabéns ao ministro Benedito Gonçalves. Em uma sustentação tão brilhante como extensa, ele confirmou o que o Brasil inteiro já sabia: Bolsonaro fez de tudo para tentar dar um golpe de estado, e só não conseguiu porque foi incompetente em tudo o que se propôs a fazer – inclusive isso. A alegria só não foi maior porque Gonçalves e os outros ministros eximiram o general Braga Netto de culpa. O País ainda tem medo de punir os militares, mesmo quando merecem. Inveja da Argentina.
Acho simbólico e importante o fato de a inegibilidade de Bolsonaro ter sido declarada com o voto de uma mulher, a excelente ministra Cármen Lúcia. É uma ironia saborosa, principalmente depois de tudo que o ex-presidente falou e fez contra as mulheres durante seu mandato. Quanto ao voto do ministro Alexandre de Moraes, há pouco o que comentar: ele afirmou que Bolsonaro não passa de um mentiroso, o que também já é conhecido há tempos por todos.
Esse trecho é impagável: “A Justiça é cega, mas não é tola. Não podemos e insisti à época, não podemos criar um precedente avestruz. Todo mundo sabe o que ocorreu, só que todos escondem a cabeça embaixo da terra. Não podemos aqui confundir a neutralidade da Justiça, o que tradicionalmente se configura com a fala ‘a Justiça é cega’, com a tolice. A Justiça Eleitoral não é tola.”
Moraes é o cavaleiro solitário que impediu o Brasil de virar uma ditadura. Sua importância para a democracia brasileira ainda será fruto de muitas análises no futuro. Se houver Justiça e não elegermos mais nenhum mentecapto que tente apagar o que aconteceu no Brasil nos últimos anos, os livros de história trarão o nome de Moraes com grande destaque.
O voto de Kassio Nunes Marques foi confuso. Ele elogiou as urnas eletrônicas, o que é bastante óbvio, mas disse que a reunião de Bolsonaro com embaixadores “não era uma tentativa concreta de desacreditar o resultado da eleição”. Peraí: dizer ao mundo inteiro que as urnas eletrônicas brasileiras não funcionam não é uma tentativa de desacreditar o resultado da eleição que aconteceria alguns meses depois? Acho que faltou um pouco de raciocínio lógico na argumentação. Ou, talvez, eu possa ter entendido mal o português de Nunes Marques.
Não podemos, no entanto, deixar de apontar um trecho vergonhoso em sua atuação: o ministro declarou que seu voto não era por “simpatia política”. Pense bem: para um ministro do TSE ter que declarar oficialmente que não votou por “simpatia política” é porque sim, ele votou por simpatia política. Um momento grotesco que entra para a história do tribunal – pela porta dos fundos.
Queria comentar também a atuação de Raul Araújo, ministro que também votou pela absolvição de Bolsonaro. Não tenho nível jurídico para discutir com ele, mas queria apenas expor duas situações e deixar que você, leitor, use o bom senso para julgar o juiz.
Na época do festival de rock Lollapalooza, em 2022, Raul Araújo censurou artistas que queriam declarar o voto em Lula – ele chegou a proibir toalhas com o rosto do atual presidente. Pois veja a diferença de atitude: em seu voto, na última quinta-feira, Araújo afirmou que quando um ex-presidente, no exercício de sua função, atenta contra a própria nação e mente deliberadamente para desacreditar o sistema eleitoral de seu país diante de diplomatas estrangeiros, ele está apenas exercendo sua “liberdade de expressão”.
Araújo afirmou ainda que, como Bolsonaro não teve sucesso eleitoral, seus ataques não foram tão graves assim. Tentar dar um golpe de estado e trair a democracia, na opinião de um juiz do Tribunal Superior Eleitoral, merece a absolvição. É coisa corriqueira, do dia a dia. Apenas um encontro informal, sem relevância. É estranho lembrar que o Itamaraty, órgão responsável pelas relações exteriores, sequer foi consultado sobre o evento.
A posição foi contestada, de maneira meio humilhante, pelo colega, ministro Floriano de Azevedo Marques. Ele usou os argumentos de Araújo contra ele mesmo. A comparação é tão boa que até eu entendi: Floriano disse que não é porque um bombeiro chega rápido e impede um incêndio que não se deve punir o incendiário. Uma metáfora perfeita e, para alegria da torcida brasileira, em português claríssimo.