Jason Goodrich

Durante noventa minutos e simbolicamente rolam cabeças de chefes de Estado e presidentes que demonstram clara vocação ao caudilhismo. Por que noventa minutos? Porque essa é a duração de uma partida de futebol — e as tais cabeças rolam, é claro, feito bola. Já o simbolicamente, isso fica fácil de ser compreendido, uma vez que ninguém saiu degolando ninguém: as cabeças continuam em seus respectivos pescoços, exercendo o autoritarismo. São suas réplicas perfeitas, confeccionadas em silicone, que vão para os campos em todo o mundo – campos de bairros pobres, grama rala e público composto por curiosos em partidas as quais se convencionou chamar de “peladas”. Trata-se de uma forma de protesto intitulado “Freedom Kick” (“Chute da Liberdade”), e responde por sua organização o coletivo de arte de rua Indecline, que tem a sua maior força nos EUA sob o comando do artista plástico espanhol Eugenio Merino. “O silicone não engrandece nem enobrece o personagem”, diz ele. De todo o grupo, somente Merino aparece com nome e rosto, os demais mantêm-se em um necessário e seguro anonimato.

Vamos à bola, ou, melhor, às cabeças. Três delas são: a de Jair Bolsonaro, presidente do Brasil, Donald Trump, presidente dos EUA, e Vladimir Putin, presidente da Rússia. E pelo menos outras duas já estão prestes a entrar em campo: a do primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, e a do presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte. Como se vê, todas elas passam longe das traves da democracia, da tolerância, da civilidade e do Estado de Direito. O artista Eugenio Merino afirma que “esses líderes representam o pior das políticas ultraconservadoras, e do desrespeito aos direitos humanos”.

SIMBÓLICO A cabeça em silicone de Jair Bolsonaro virou bola na comunidade do Gato, em São Paulo: pisando no autoritarismo (Crédito:Divulgação)

Por que o futebol foi escolhido para os protestos? “Por que é globalmente popular, em todo o mundo reúne pessoas”, responde um anônimo membro do grupo. “Não daria, por exemplo, para denunciar os riscos de ditaduras tendo a religião como canal, porque ela própria gera radicalismos”.

Em São Paulo, o jogo aconteceu em uma modesta quadra de futebol na comunidade do Gato, no bairro paulistano do Brás, antiga região da cidade a reunir comércio, moradias e indústrias. Como a bola-cabeça de Jair Bolsonaro chegou lá? Mistério. O que se sabe é que sobrou gente fora dos dois times, tanto foi o alvoroço e o interesse que a partida despertou — ou seja, Bolsonaro anda em baixa por ali. Engrossaram as equipes os jogadores do time de várzea LGBT Rosa Negra. ISTOÉ entrevistou um dos jogadores: Tiely Santos, 45 anos, historiador e multiartista. “A ideia da manifestação foi mostrar que o fascismo está voltando com muita força, não apenas no Brasil, mas no mundo”, diz ele. “As cabeças que viram bola são a representação acabada do autoritarismo em nosso século”. Segundo o historiador, “é uma tentativa de tirar os povos da inércia em que se encontram”. O jogo foi filmado como acontece em todos os países, e, segundo Tiely, quanto mais filmavam, mais a rapaziada chutava com força a cabeça de El Rei. “O pessoal descontou toda a opressão, toda a dificuldade da vida”, diz Tiely. “Mas é importante alertar que nossos protestos não são agressivos, estão no mesmo patamar da agressão que esses governates cometem”.

“A ideia da manifestação foi mostrar que o fascismo está voltando com muita força, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo”,  Tiely Santos, historiador  e multiartista

Coletivos unidos

O Indecline foi formado há dezenove anos por skatistas, grafiteiros, artistas visuais e ativistas de diversas causas: críticos do racismo, defensores da preservação ambiental, do direito à pluralidade de ideias políticas e crenças religiosas. Até hoje se preserva assim, da mesma forma que não mudam as ameças que recebem: vão de xingamentos a juramentos de morte. Isso se repetiu quando o vídeo do jogo no Brasil foi postado no Instagram do Indecline, embora um dos participantes do grupo tenha sido extremamente didático: “Jair Bolsonaro se sente ofendido com homessexualidade, com feminismo, com socialismo. Mas não se importa com a violência que se pratica contra seus oponentes políticos”. As mesmas reações ocorreram após dois jogos nos EUA: em um deles a cabeça de silicone de Vladimir Putin rolou sobre a grama do jardim do Congresso, em Washington; na outra partida, a cabeça de Donald Trump foi chutada na fronteira com o México — ali mesmo, entre San Diego e Tijuana, onde o presidente americano queria construir um muro para impedir a entrada de imigrantes.