Existe uma plenitude no olhar de Gilberto Gil, de quem passou por uma tempestade e saiu ileso. Mas Gil não fez essa travessia sozinho. Ao seu lado, estavam família, velhos amigos, novos amigos. Em 2016, o músico fez tratamento para insuficiência renal. Veio, então, a apreensão. E criou-se uma rede de amor ao seu redor, que ele, como compositor, captou e transformou em música. Nesse período de tratamento e recuperação, compôs de 4 a 5 músicas. A elas, uniram-se outras canções inéditas e, juntas, deram origem a seu novo disco, Ok Ok Ok, já disponível em vinil, CD e no Apple Music, e a partir do dia 17, em todas as plataformas digitais. É o disco mais afetivo de sua carreira. “Sem dúvida”, concorda o músico, aos 76 anos, em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, no Studio OM.art, no Rio, na quinta, onde foi realizado o evento de lançamento do álbum e também de seu programa, Amigos, Sons e Palavras, no Canal Brasil.

“É (o trabalho) mais explicitamente afetivo, porque tive de trazer a afetividade para as denominações familiares: filhos, netos, bisneta.” Explica-se. Nesse universo de acolhimento que Gil recriou em Ok Ok Ok, há uma coleção de músicas dedicadas a personagens específicos desse seu círculo de vivência – e convivência. Canções à sua mulher Flora, em Na Real e Prece; às novas musas Maria Ribeiro e Andréia Sadi, em Lia e Deia; ao amigo e violonista Yamandu Costa, em Yamandu (o homenageado participa tocando na faixa). Para seus médicos, Roberta Saretta e Roberto Kalil, fez, respectivamente, Quatro Pedacinhos e Kalil (esta, como uma das faixas-bônus). Na primeira composição, Gil transformou em poesia a biópsia ao qual seu coração foi submetido; na segunda, fez um tributo a Dr. Kalil numa roupagem quase naïf.

Nas referências às novas gerações, a sensação é de celebração aos entes que vão dar continuidade à família e, por tabela, à linhagem Gil. Sua bisneta é tema de Sol de Maria. Para os netos, fez Sereno (a primeira parceria dele com o filho Bem Gil, produtor do disco) e Tartaruguê (esta, em homenagem a Dom). “Para ele, praticamente só existiam as Tartarugas Ninjas, além do pai, da mãe (risos). Aí fiz a música para ele. Tartaruguê quer dizer o quê? Não quer dizer nada, é um balbuciar infantil sobre alguma coisa”, diverte-se Gil.

A canção Jacintho foi pensada para um amigo que entrou na sua vida mais recentemente, quando estava às vésperas de completar 100 anos. Isso fez o músico refletir sobre o envelhecer. Esse tema também é debatido por ele e Caetano Veloso no primeiro episódio de Amigos, Sons e Palavras, que estreia no próximo dia 21, às 21h30 – e dá início às comemorações de 20 anos do Canal Brasil. Foi um assunto que Gil pensou durante sua recuperação, conta ele. “Mas com o consolo de ter tido essa preocupação mais jovem, de ter dedicado, durante longa parte da minha vida, à questão da saúde, de ter respeitado essa questão da velhice. Ao mesmo tempo, a gente se habitua a lidar com a ideia permanente da finitude. Como dizia Canô, quem não morre envelhece. E quem envelhece traz a carga disso, de ter vivido com essa questão da finitude cotidianamente, de ter pensado nisso para que isso não viesse a se tornar um drama.”

Nas redes. Em contrapartida a todo amor que envolve seu disco, a primeira faixa, Ok Ok Ok, é o único momento em que Gil fala de como ele é alvo de ódio nas redes – e de como é exigida dele opinião sobre tudo. É um desabafo? “Para nós e para muita gente. Todos esses visados, perseguidos por essa obsessão recente do discurso de ódio, da manifestação ofensiva contra as pessoas, contra certas escolhas de vida das pessoas, esse discurso da intolerância. Ali é a parte que me toca, especialmente no meu caso, por causa de um certo hábito histórico que se instalou da nossa vida, por força da função que a nossa geração teve nos anos 1960, 70, de se fortalecer junto à sociedade brasileira, para resistir à ditadura. Em Ok Ok Ok, sou eu, mas são todos os nossos colegas, conhecidos e anônimos.”

Por falar em redes sociais, após muitos pedidos, Gil atualizou, duas décadas depois, a letra de Pela Internet, que, no novo disco, ganhou a versão Pela Internet 2. Ainda falando em redes, como é se posicionar politicamente nos dias de hoje, como fez no Festival Lula Livre? “Acho que é importante, porque o destino que foi determinado ao ex-presidente Lula é um destino complexo, entristecedor, para uma parte muito grande da vida brasileira, que teve nele uma referência para as questões da emancipação na vida social do País e que vê na condenação e prisão dele um viés de perseguição política, que, para mim, também é visível”, responde Gil. “Cantar Cálice (com Chico Buarque, no festival) foi simbólico, a cantei raríssimas vezes. Aí Chico sugeriu e eu disse: ‘Vamos cantar’. Acho (essa música) triste, pesada. Ali tinha uma coisa política.”

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As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


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