Quem assiste à série “Maria e o cangaço”, da Disney+, não passa desatento ao talento de Geyson Luiz, um jovem pernambucano que carrega na alma a vontade de explorar o poder transformador da arte. Desde cedo, ele sentia o desejo de despontar na carreira de ator e ainda no começo da vida abandonou o mundo que o cercava em busca de integrar o universo da arte e da cultura.
Na produção, Geyson Luiz interpreta o cangaceiro Zé Bispo, personagem inspirado na figura real de Zé Baiano – um dos mais sanguinários integrantes do bando de Lampião que se destacava não apenas pela crueldade, mas por ser o membro mais abastado do grupo.
O artista também está na última fase da série “Sintonia”, lançado em fevereiro na Netflix, além de poder ser visto este ano em festivais pelo Brasil, estrelando o filme paraibano “O Braço” e no elenco dos longas “Aurora”, “Ao sabor das cinzas” e “Coração de lona”.
Com 27 anos e mais de 20 de carreira, Geyson Luiz ganhou projeção nacional ao protagonizar as duas temporadas (2019 e 2024) da série “Lama dos dias”, que resgata o início do movimento manguebeat e remonta a cena cultural de Recife dos anos 1990. A produção está disponível no catálogo do Globoplay. Ele também atuou na elogiada “Cangaço Novo”, na Prime Video, e no filme pernambucano “Salomé”, vencedor de diversos prêmios no Festival de Cinema de Brasília, em 2024.
Geyson Luiz começou a estudar interpretação na escola em sua cidade natal, Limoeiro, na Zona da Mata pernambucana. Aos 13 anos fugiu de casa para se dedicar à carreira artística e chegou a morar nas ruas de Minas Gerais até ser convidado para alegrar o público no circo do ator Marcos Frota e no Le Cirque. Depois, se tornou estudante e monitor do Centro Cultural Piollin, ONG de João Pessoa, voltada para o desenvolvimento infanto-juvenil por meio da arte, cultura e educação.
Atualmente estudando licenciatura de teatro na UFPB, Geyson Luiz ainda tem vários espetáculos e curtas-metragens em seu currículo.
Em bate-papo para IstoÉ Gente, o artista conta sua trajetória de vida até despontar na carreira artística. Ele destaca que, apesar de ter deixado o convívio com a família ainda muito jovem, é dos ensinamentos que recebeu em casa que vem a inspiração para viver seu sonho e para explorar a arte em seus trabalhos.
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Geyson, você saiu de casa aos 13 anos. Como foi tomar essa decisão? Como essa experiência te transformou?
Nasci no dia 24 de junho de 1997, na cidade de Limoeiro, localizada na Zona da Mata pernambucana. Filho de Xangô, fui criado no terreiro de sua Dona Maria do Carmo, minha avó. Minha infância foi marcada por tradições culturais e folguedos populares, que uniam as comunidades da região em atos de resistência e fé.
A influência da cultura popular está presente em toda a minha trajetória como artista. Por exemplo, vestia-me como um caboclo de lança, figura emblemática do Maracatu Rural: usava um galho de arruda atrás da orelha e um cravo ou rosa branca na boca para me proteger, para manter o corpo fechado. Eu era um brincante intenso do Cavalo Marinho, ogã, dançava e cantava no terreiro que ficava no alto da serra.
Apesar da efervescência cultural da minha família—religião, tradições, festejos—vivíamos na pobreza. Faltava comida, e, por vezes, a escola, por mais precária que fosse, era não só fonte de conhecimento, mas também de alimento para mim e meus dois irmãos. Muitas vezes, nos verões secos, faltava água, e tínhamos que subir e descer a serra em busca de água salobra. Para um pirralho como eu, não havia perspectiva de futuro.
O teatro foi um divisor de águas doces. No pátio da cidade, onde aconteciam os eventos, apareceu uma trupe circense de palhaços. Aquilo me encantou de forma tão intensa que comecei a acreditar num caminho que eu mesmo poderia traçar. Aos sete anos, comecei a fazer teatro na escola, declamando cordéis e dançando balé. Foi então que o grupo teatral da cidade, “Cia. Lionarte”, me chamou para participar de seus espetáculos.
Naquela época, o ator limoeirense Irandhir Santos fez sua primeira aparição na televisão e tornou-se um fenômeno em nossa cidade. Ele passou a ser minha principal referência profissional e uma grande inspiração — um jovem que conseguiu sair do interior e construir uma carreira artística admirável.
Enfrentei resistência da minha família, presa a um pensamento ignorante. Aos 13 anos, após o falecimento de minha avó Maria do Carmo, eu vivia indignado com as dores que assolavam minha família. Fugia de casa repetidas vezes. Numa dessas fugas, trabalhei num circo pequeno, mas voltei pouco depois—os castigos não me aquietavam. Mas de uma coisa eu tinha certeza: eu era o garoto mais esperto da escola.
O grupo de teatro do qual eu fazia parte conseguiu um projeto de intercâmbio em Minas Gerais. Fui junto e descobri que o mundo ia muito além das fronteiras dos meus afetos. Numa dessas fugas, fiquei na rodoviária. Ali, fiz do chão meu palco: com maquiagem, algumas roupas e frutas na mochila, estava decidido a não voltar. O sinal da faixa de pedestres virou meu sustento, e o acolhimento dos artistas de rua, meu refúgio. O que me mantinha era a memória do corpo, o fazer teatro, e a palhaçaria, que enchia meus bolsos de moedas.
Até que um dia, na rua, próximo a um circo, um olheiro me convidou para alegrar o público. Juntei o suficiente e, então, decidi retornar às minhas raízes. Em 2013, entrei em contato com minha família—que agora vivia na Paraíba—pela internet. Com o dinheiro que havia ganhado no circo, voltei de ônibus para o Nordeste. Na Paraíba, retornei aos palcos, e assim começou minha jornada como ator no cinema.
Hoje, você é estrela de vários filmes e produções do streaming. Acreditava que todo seu esforço te levaria para esse lugar?
Não, porque na arte, quanto mais como, mais fome sinto.
Ainda estou aqui, batalhando todo santo dia, correndo contra o tempo. Estudando o mundo. Aprendendo o valor de cada momento. Acreditando num mundo possível de se viver. Vivi—e viverei mil anos—aprendendo a ser.
Como ator, acredito na memória como algo puro: o mais valioso que carrego. E nos sonhos, meu grito de guerra. Um dos meus apelidos de infância era Pupilo, porque vivia no pé dos meus professores e mestres. O lugar que posso chegar tem o nome de todas as pessoas que acreditaram em mim. Será sempre a elas que direi obrigado. Porque a arte em que acredito é o que há de mais verdadeiro. É com ela que escrevo a poesia dos meus caminhos.
Hoje, sua família que não te apoiava a seguir a vida artística…como ela reage ao seu sucesso?
Orgulhosos! Era um tempo de chão rachado. As condições do passado não eram apenas precárias — eram um espelho do Brasil que engole sonhos antes que eles aprendam a andar. Não havia futuro, só o presente estreito de quem mal podia respirar. Como ousar imaginar que um dia eu seria artista? Que essa palavra, pesada como ouro e frágil como cinza, me pertenceria?
As noites em claro, o suor lavando a maquiagem, os olhos ardendo de cansaço e êxtase — tudo isso era o preço e a recompensa. A poesia não era escape: era o chão que eu pisava para não afundar. A maquiagem, o figurino, o palco, eram trincheiras. Cada verso, um sopro contra o vento que diz “desiste”.
Minha família se sente orgulhosa por eu ter mostrado que o amor pela arte — e nunca deixar de acreditar na poesia — era a razão, a fuga e a libertação. As noites em claro, o suor escorrendo sob a maquiagem, os olhos brilhando… Tudo isso me guiou pelos caminhos que trilhei e me permitiu honrar minhas raízes.
Hoje, com mais de 20 anos de carreira, acha que todo sacrifício em nome da arte valeu à pena?
Sinto um chamado irresistível de comunicar – de compartilhar com o mundo aquilo em que acredito, emocionando e encantando gerações. Planto sementes criativas em cada espaço que ocupo, enquanto colho os frutos dourados dos encontros que a arte e a vida generosamente me oferecem.
Ser artista no Brasil é abraçar o sacrifício com propósito. Nosso ‘porquê’ se revela no fazer, e as respostas pulsam em cada ação. O público não espera apenas representação – ele anseia pela coragem de quem vive com intensidade, transformando dor em beleza e resistência em legado.
Você trabalhou em circo. Como isso ajuda seu trabalho como ator?
O circo me ensinou a coragem que faltava: a de enxergar o erro não como queda, mas como convite — para questionar, aprender e refazer os caminhos sem medo. De coração aberto, absorvendo o que o mundo devolve aos meus sentimentos, e com a generosidade de quem se permite conhecer, de verdade, o outro. De olhar nos olhos e ver histórias ali.
O circo me deu a coragem de falhar. De chorar no picadeiro e ouvir meu pranto virar riso. De entender que o erro é só o começo de outra história. Num país que ensina a disfarçar a dor, ser palhaço foi meu ato político: mostrei a ferida e deixei que rissem dela.
O que pode contar da série e como foram as gravações?
Além do entretenimento proporcionado pelas grandiosas atuações nordestinas, a obra reúne mais de 50 atores de todo o Nordeste e conta com um trabalho técnico impecável — desde a maquiagem e o figurino até a fotografia. Cabaceiras, sob o sol do sertão, converte-se em palco vivo, onde a história de Lampião e Maria Bonita renasce através da fotografia que captura a aspereza e o fulgor do cangaço.
Com a preparação em mais um projeto com Fátima Toledo, Na série, interpreto o cangaceiro Zé Bispo, personagem inspirado na figura real de Zé Baiano – um dos mais sanguinários integrantes do bando de Lampião. Como braço direito do “Rei do Cangaço”, destacava-se não apenas pela crueldade, mas por ser o membro mais abastado do grupo, tendo aderido ao movimento mais por afinidade ideológica do que por necessidade.
Sua notoriedade vinha principalmente da prática brutal de marcar rostos humanos com o mesmo ferrete usado no gado – um ato de violência simbólica que transformava corpos em territórios conquistados. Zé Bispo emerge na narrativa como um espelho distorcido de questões contemporâneas: a violência como código de honra, o luto como condição existencial, e a cultura do ódio que persiste em novas roupagens. Mais que um vilão convencional, ele se configura como uma das presenças mais antagônicas e psicologicamente complexas do streaming brasileiro – uma encarnação do que há de mais sombrio em nossa formação social.
“Maria e o Cangaço” se passa (e foi gravada) no Nordeste. O que mais te chamou a atenção nesse projeto?
Um épico que transforma o cangaço em metáfora viva: não mais os bandidos dos manuais, mas homens e mulheres cujas veredas se confundem com o próprio sertão da existência. O público, acostumado a engolir histórias mastigadas, é agora convidado a roer os ossos da narrativa. Maria e o Cangaço não se contenta em ser espelho – é um mapa de carne e osso do Nordeste que insiste em não ser lenda. O elenco, tal qual um terreiro de raízes secas sob o sol implacável, não representa personagens: encarna arquétipos que sangram.
Como é fazer parte dessa nova safra de artistas nordestinos que estão ganhando espaço e projeção no audiovisual brasileiro?
O Nordeste é um grande berço de artistas. Vários nordestinos se tornaram grandes nomes do audiovisual brasileiro. No entanto, as grandes produções do mercado sempre estiveram concentradas no eixo Rio-São Paulo, perpetuando uma perspectiva limitada sobre o trabalho do artista nordestino, muitas vezes reduzindo-o a estereótipos que reforçam uma ideia de inferioridade, sem oferecer um protagonismo de sustância. O país carrega tantas histórias, tantas lutas. Dentro do eixo Norte-Nordeste, os olhares estão voltados para novas narrativas e suas complexidades, que refletem as diversidades do nosso país, com seus sotaques, costumes e tradições únicas em cada estado.
No trabalho do ator, é essencial entender que não existe apenas uma forma de naturalidade. Construir uma personagem dentro dos padrões que o público já conhece é importante, mas na atuação não podemos nos limitar a estereótipos. Todo indivíduo carrega uma história, suas lutas e razões, que na arte trazemos para reflexão sobre a existência. O cinema independente tem mostrado o outro lado da moeda, destacando o Nordeste para o mundo, explorando novas narrativas e propondo ao público brasileiro conhecer mais sobre os “Brasis” que existem em nosso território.
O Nordeste é um lugar cheio de encantos e mistérios, que carrega a história do país no trabalho, na educação, na força de cada indivíduo e na paixão ardente que levanta os nordestinos todos os dias. Temos orgulho da nossa cultura, da memória que o corpo sertanejo carrega. Dar vida às histórias do meu país é a maior honra que eu possa ter.