Aproveitando a chegada das festas de final de ano, decidi arrumar os livros aqui de casa. Selecionei cerca de cem exemplares para a Árvore de Natal daqui de casa e que serão doados em janeiro para o sebo de um amigo (DesculpeAPoeira). Quem arruma a biblioteca sabe o trabalho que isso dá, mas no meio de tanta agitação encontrei  um dos livros mais deliciosos que já li: “A Autobiografia de Alice B. Toklas”, escrito por Gertrude Stein (1874-1946).

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Esse livro inspirou o filme “Meia Noite em Paris”, de Woody Allen, e é um dos mais preciosos registros sobre as origens da arte e da literatura moderna. Conta como era Paris no início do século XX e tudo o que borbulhava na época. A narradora do livro é Alice, companheira de Gertrude Stein durante toda sua vida, o que permitiu escrever de si própria em terceira pessoa, tecendo muitos elogios sem falsa modéstia. Alice diz que apenas em três ocasiões um sino tocou dentro dela de modo a denunciar a presença de um gênio: quando foi apresentada ao filósofo inglês Alfred Whitehead, ao pintor espanhol Pablo Picasso e à escritora norte-americana Gertrude Stein (Risos!).

A biografia publicada em 1933 demonstra toda a criatividade de Gertrude, a força de sua narrativa e nos permitiu entrar naquele grupo de amigos e naquela sala de visitas que mudou a história da arte moderna. No lendário número 27 da Rue de Fleurus, Gertrude reunia seus amigos, todos jovens e desconhecidos: Picasso, Matisse, Hemingway, Jean Cocteau, Apollinaire, Ezra Pound, James Joyce, Scott Fitzgerald, entre muitos outros. O local era uma residência de dois andares com um estúdio adjacente e que ficava perto dos Jardins de Luxemburgo. Esse livro é super importante para mim por lembrar que existem, sim, combinações mágicas que são inexplicáveis. Gertrude Stein foi, sem dúvida, uma das maiores influenciadoras de arte do mundo, apesar de poucos acreditarem que isso seria possível, pois ela tinha todas as características das minorias: era mulher, judia, estrangeira, lésbica e ativista do movimento feminista.

O século XX não estava preparado para Gertrude Stein. Nascida em 1874 nos Estados Unidos, era a caçula de uma família rica de Pittsburgh. Passou boa parte de sua vida no exterior, na Áustria e na França. Foi escritora, dramaturga, poetisa e, principalmente, uma das maiores colecionadoras e impulsionadoras de arte da época. Era a vanguarda em pessoa, mas com um ego tão grande quanto o dos maiores artistas. Sem timidez, soltava frases do tipo: “Einstein é a mente filosófica criativa do século e eu sou a mente literária mais criativa do século”. Com tanta irreverência, acabou se tornando um marco para o universo das artes e foi capaz de influenciar gerações e mais gerações de escritores, sempre procurando estabelecer uma analogia entre este ritmo narrativo e a jornada do próprio Homem.

Gertrude admirou Cézanne, traduziu Flaubert, descobriu Picasso e discutiu com Matisse. Infiltrou-se nos bastidores para descobrir e revelar artistas, sempre com ousadia.  Vale dizer também que foi alvo de críticas durante a vida e, também, depois de seu falecimento. Sua homossexualidade, por exemplo, foi amplamente revelada no livro póstumo de Ernest Hemingway, “Paris é uma Festa” (1965).

Seu gosto e seu olhar para a arte eram únicos. Fazia parte de sua coleção o quadro “A Mulher com Chapéu”, de Henri Matisse. Trata-se de uma obra com pinceladas descuidadas, com cores fortes. Se o quadro surpreende mesmo depois de um século, imagine a reação quando a pintura foi exibida pela primeira vez em 1905.  Quando Leo Stein, irmão de Gertrude, viu o quadro pela primeira vez, ele pensou que era a pior mancha de tinta que já havia encontrado. Mas, depois de admirar a obra ao lado de sua irmã durante semanas, em sua primeira exposição no Grand Palais de Paris, decidiram comprá-la por 500 francos (o equivalente a cerca de US$ 100), valor que ajudou a acalmar o desespero de Matisse por dinheiro, na época.

A sala de visitas de Gertrude ficou por um bom tempo lotada por diversos artistas, amigos e até mesmo curiosos interessados em apreciar a tela. Décadas depois, em 2011, filas também se formaram no Metropolitan de Nova Iorque e no Museu de Arte Moderna de São Francisco para a exposição “The Steins Collect” que, graças à tecnologia você pode acompanhar pelo link.

Leo e Gertrude formavam uma dupla que funcionava como uma incubadora de arte. Analisavam várias obras, conversavam com os artistas e incentivavam a criação de pinturas diferentes. Eles eram sustentados pelo irmão mais velho, que morava nos Estados Unidos administrando um negócio de aluguel de imóveis que herdou do pai. Mesmo sendo colecionadores iniciantes, conseguiram comprar seis pequenos quadros de mestres já consagrados como Renoir, Gauguin e Cézanne, que admiraram muito pela intensidade sem paralelo em toda a história da pintura. Aliás, as pinceladas de Cézanne chegaram a influenciar até o jeito que Gertrude escrevia. Passou a registrar as palavras da maneira deliberada, repetitiva e em blocos, da mesma forma que Co pintor empregava pequenos planos de cor.

Apesar da paixão, os recursos não permitiam aquisições muito caras e a alternativa foi procurar artistas emergentes. Eles foram mestres no descobrimento de jovens talentos, como Pablo Picasso, que soube muito bem explorar a amizade para promover seu nome. Foi nesse ambiente intelectual, inovador e desafiante que Picasso e Matisse se conheceram em 1906 e, depois, viraram grandes rivais (leia Amor e Ódio na Arte). Essa disputa foi muito boa para o desenvolvimento artístico dos dois, mas gerou muitas discussões, inclusive por questões mínimas como a posição dos quadros dos dois artistas na parede da casa dos Stein. O desgaste era grande quando cada um dos artistas chegava com uma obra nova. Imediatamente, o outro corria para produzir algo melhor. Foi nessa época que grandes obras foram produzidas como “Les Demoiselles d’Avignon”, de Picasso. Também nesses anos que Gertrude e Leo, assim como seus outros irmãos, compraram muitas pinturas de Matisse até que o momento que seus quadros se tornaram proibitivos (o industrial de Moscou, Sergei Shchukin, apaixonou-se pelo trabalho de Matisse e tornou-se seu principal patrono).

Indiscutivelmente um dos quadros mais conhecidos de Pablo Picasso é “Gertrude Stein” (1905-1906), retratada com o cabelo preso em um coque e vestida com um terno de veludo marrom que era praticamente o uniforme que ela usava com frequência. A paleta de cores é discreta para direcionar a atenção do observador diretamente para o rosto de Stein e seu intenso olhar. Trata-se de uma obra importante por ser a transição que marca o final de seu Período Rosa de arlequins e temas circenses.

Quando Leo e Gertrude se desentenderam, a coleção começou a ser mutilada. Ele ficou com 16 Renoirs, mas teve que abandonar muitos trabalhos de Matisse e todas as obras produzidas por Picasso, exceto alguns esboços em papel que o artista havia feito dele. Seguiu sua jornada sem a irmã, mas leal a Cézanne, que morrera menos de uma década antes. Ficou orgulhoso de ter ficado com a pequena e bela pintura desse artista cinco maçãs, considera por ele como a grande sua grande obra prima. Gertrude ficou desolada com essa perda e nem a aquarela de maçã, pintada por Picasso como presente de Natal, ajudou a melhor o seu ânimo.

Em seu voo solo, chegou a adquirir pinturas de outros jovens artistas como Juan Gris, André Masson, Francis Picabia e Sir Francis Rose. Quando as despesas a sufocaram, foi obrigada a sacrificar algumas pinturas para conseguir sobreviver. Chegou a “comer um Cézanne”, da mesma forma que seu irmão Leo vendeu a maioria dos quadros de Renoir que tinha. Mesmo com os solavancos ao longo do caminho, Gertrude manteve sua amizade com Picasso e sua posição de colecionadora de suas obras. Infelizmente, ficou trinta anos sem ver o irmão e morreu brigada com ele aos 72 anos, em 1946. Uma pena. Tomara que os tempos de Covid-19 não afastem as pessoas de quem elas amam. Se tiver uma boa história para compartilhar, aguardo sugestões pelo Instagram Keka Consiglio, Facebook ou no Twitter