BEST-SELLER Geovani Martins: 50 mil exemplares vendidos de “O Sol na Cabeça” (Crédito:Divulgação)

Em julho, autores negros lançaram nos EUA um manifesto pela “Igualdade racial na representação literária”, texto assinado por mais de 900 homens e mulheres e endereçado a grandes grupos editoriais como Penguin Randon House e Barnes and Noble. Essa luta por um espaço do tamanho do talento dos autores, desafio que já dura décadas, começa lentamente a surtir efeito. No Brasil, uma nova geração de escritores negros de ficção se impõe pela alta qualidade de suas obras, sem abandonar as temáticas que escancaram os problemas do racismo e da desigualdade racial no País. “Não trabalho a ficção como ativismo, meu interesse é contar uma boa história”, afirma Jeferson Tenório, elogiado autor de “O Avesso da Pele”, apontado como um dos melhores livros do ano. “As questões raciais são posteriores, até porque os personagens são atravessados por isso. A literatura age em tempo mais lento e mais subjetivo que o ativismo.”

SUSPENSE Ana Paula Maia: uma das vozes mais originais da nova literatura (Crédito:Divulgação)

O livro conta a história de Pedro, protagonista que sai em busca do passado da família após a morte do pai, assassinado em uma desastrosa abordagem policial. Sem recorrrer ao sentimentalismo, Tenório expõe as mazelas que seus personagens têm de enfrentar. Ao mesmo tempo em que encaram os dilemas existenciais e familiares comuns a todos os seres humanos, ainda são obrigados a conviver com a onipresente opressão racial. “Não queria escrever um livro panfletário, mas apresentar um equilíbrio entre o estético e o político”, afirma o autor, que buscou inspiração não apenas em sua experiência pessoal como brasileiro – Tenório é carioca e mora em Porto Alegre –, mas, também, em icônicos autores americanos, como James Baldwin, Ralph Ellison e Toni Morrison. “As jornadas negras são muito parecidas em diversas partes do mundo. Não no sentido literário, mas na questão das experiências, mesmo.” Segundo o autor, o interesse maior do mercado editorial pela nova geração de escritores negros é resultado de lutas que vêm desde a década de 1970 e fruto do crescimento do número de pessoas negras nas universidades federais públicas. “A demanda por essas narrativas estava escondida. A morte de George Floyd expôs isso ao mundo”, conclui. Os direitos do livro já foram negociados na Europa e a obra deve ganhar versão cinematográfica produzida pela RT Features.

Outro carioca que vem chamando atenção do mercado internacional é Geovani Martins, autor de “O Sol na Cabeça”. Aos 26 anos escreveu o livro de estreia que vendeu mais de 50 mil exemplares. Com versões traduzidas para os EUA, Alemanha, China e mais cinco países, a obra traz 13 contos sobre a vida nas favelas do Rio de Janeiro, palco onde o cotidiano se divide entre os banhos de mar e a violência policial. Lançado em 2018, recebeu elogios de escritores como Chico Buarque e Marcelo Rubens Paiva, e chegou a ser apontado pelo cineasta João Moreira Salles como símbolo da “nova língua brasileira”.

As mulheres também estão bem representadas. Ana Paula Maia mostra um estilo que mescla novela policial, faroeste de horror e romance filosófico, e é uma das vozes mais originais da literatura contemporânea brasileira. Sua linguagem direta e eletrizante lhe rendeu duas vezes seguidas o cobiçado prêmio São Paulo de Literatura. Em 2018, venceu com “Assim na Terra Como Embaixo da Terra”, texto inspirado em “Na Colônia Penal”, de Franz Kafka. No ano seguinte, ganhou com “Enterre Seus Mortos”, história sobre dois funcionários de uma empresa que recolhem animais mortos das estradas. Assim como Jeferson Tenório e Geovani Martins, o livro mais recente de Ana Paula Maia foi lançado no exterior e ganhará adaptação para as telas de cinema.

“Não trabalho a ficção como ativismo, meu interesse é contar uma boa história”
Jeferson Tenório, escritor

Ativismo

Na nova geração de escritores também há destaques fora do campo da ficção, com a filósofa Djamila Ribeiro, autora de “Pequeno Manual Antirracista”, e a jornalista Rosane Borges, autora de “Mídia e Racismo” e “Esboços de um Tempo Presente”. O mercado editorial também está resgatando nomes de referência na luta contra o racismo. O recém-lançado “Lições da Resistência”, livro do jurista Luiz Gama, reúne importantes artigos publicados na imprensa nas décadas de 1860 e 1880. Outra fonte de inspiração é Lélia Gonzalez, filósofa e personagem decisiva na rearticulação das relações entre gênero e raça no País. Em “Por um Pensamento Afro-Latino-Americano” estão reunidos seus textos publicados entre 1975 e 1994. No Brasil de hoje, todas as gerações de autores negros importam.

O poder das narrativas femininas

PÉ DIREITO Regina Porter: prêmio já no primeiro livro (Crédito:Divulgação)

No século 19, dezenas de escritoras tinham de se esconder atrás de pseudônimos masculinos ou mesmo no anonimato para poder publicar suas obras. Se isso já era uma dura realidade para celebridades europeias como Jane Austen e Emily Brontë, para as autoras negras serem publicadas era uma tarefa impossível. Hoje esse cenário é bem diferente: apesar de ainda não serem maioria, essas talentosas jovens conquistam espaço e já estão entre os nomes mais consagrados da literatura mundial.

VIRAL Chimamanda Ngozi Adichie: inspiração para a cantora Beyoncé (Crédito:Divulgação)

O romance de estreia de Regina Porter, “Os Viajantes”, foi finalista do prêmio da Fundação Hemingway, um dos mais prestigiados dos EUA, e eleito um dos livros do ano pela revista “Esquire”. Já a britânica Bernardine Evaristo foi a vencedora do Booker Prize de 2019, criado em 1968 e um dos mais importantes prêmios em língua inglesa.

A autora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie transita bem entre a ficção e a realidade. Ela ficou famosa após sua palestra “Sejamos Todos Feministas”, apresentada no TED Talk, viralizar nas redes sociais. O texto em defesa da igualdade de gênero ficou tão popular que a cantora Beyoncé incluiu um trecho na canção “Flawless”. Em 2007, Chimamanda venceu os prêmios Orange e o National Book Critics Circle por seu romance “Meio Sol Amarelo”, épico sobre a guerra civil na Nigéria, traduzido para mais de 30 países. Seu livro seguinte, “Americanah”, teve os direitos para o cinema comprados por Lupita Nyong’o, vencedora do Oscar de Melhor Atriz por “Doze Anos de Escravidão”. Em “O Perigo de uma Histórica Única” e “Para Educar Crianças Feministas”, a autora empresta seu talento ao ativismo social. Em outros tempos, suas mensagens seriam proibidas. Hoje, ajudam a alcançar objetivos que vão muito além da busca pela fama literária.