Geovani Martins passa ao largo da tecnologia – enquanto são lançados computadores cada vez mais sofisticados, o rapaz prefere batucar as letras de uma antiga máquina de escrever, que ocupa um lugar de honra em seu apartamento, no Vidigal. Na verdade, seu método de trabalho é ainda mais, digamos, arcaico, pois Geovani primeiro escreve à mão em um caderno espiralado, depois datilografa na sua fiel Olivetti para finalmente digitar em um computador. Engana-se quem pensa que é maneirismo. “Descobri que, ao passar de um para outro, acrescento detalhes e retiro outros, em um processo de lapidação que torna minha escrita mais próxima do que considero ideal”, explica Geovani, que ainda lê suas frases em voz alta para uma seleta plateia, formada apenas para amigos fiéis.

Talvez esteja aí o segredo do sucesso da escrita do jovem autor: o ouvido apurado. “Gosto de ouvir histórias, especialmente a forma como elas são contadas”, conta Geovani, que dedica alguns dos 13 contos de O Sol na Cabeça aos colegas que, de alguma forma, ajudaram na criação. E os casos reproduzem o ambiente que acolheu e formou Geovani ao longo da vida. Cada pequena célula temática entra em cena e sai com rapidez de faca: crianças brincando com armas, policiais achacadores, bandidos assaltando estrangeiros. Mas também pais amorosos, amigos fiéis, a adorável velhinha macumbeira.

Antes de se desvendar a escrita de Geovani, é necessário conhecer um pouco de sua história. Ele nasceu em Bangu, em 1991. Morou na Rocinha antes de se mudar para o Vidigal. “Sou o segundo filho da minha mãe, que trabalhava no hotel Excelsior, em Copacabana. Minha avó paterna me alfabetizou com Turma da Mônica. Eu decorava as histórias e, na rua, contava para os meus amigos, fingindo que estava lendo.”

Aos 11 anos, morou pela primeira vez no Vidigal, pois era mais perto do trabalho da mãe, Neide. A recepção não poderia ter sido mais marcante. “Fazia 15 anos que tudo estava em paz, mas, logo na semana em que chegamos, a bala comeu solta”, lembra-se ele que, em Bangu, morava atrás da Vila Aliança, a favela mais sinistra do Rio. “Ouvia tiro todo dia, mas as pessoas não andavam armadas.”

Vêm desse período as lembranças que inspiraram o conto Roleta-russa, em que um menino, fascinado pela arma do pai, a manuseia escondida, até exibi-la para os amigos. A ingenuidade da criança é manchada pela crua realidade e, nessa história, Geovani revela o dom de descrever como a vida pode ser impiedosa para alguns, sem se desculpar pelo uso da violência, quando ela explode na nossa cara.

A paixão pela escrita, aliás, foi descoberta com as visitas à Bienal do Livro do Rio. Aos poucos, seu gosto se depurava. Em 2004, a mãe foi trabalhar como babá no bairro de Botafogo, de onde trazia para o menino as leituras da casa rica. “Ganhei alguns livros que não eram tão bons, como Dan Brown e John Grisham, mas lia tudo”, conta. Foi quando a irmã ganhou uma caixa com obras de Machado de Assis. Geovani relembra o impacto: “Enquanto eu levava três dias para ler um Don Brown, precisava de três meses para ler um Machado”.

Geovani tornou-se um leitor compulsivo, aproveitando principalmente as 8 horas em que ficava parado, segurando uma placa promocional de um político. “Não tinha nada para fazer, e foi quando descobri Drummond. A crônica me fascinou e comecei a escrever histórias sobre minha família”, revela o rapaz, que abandonou a escola na 8.ª série. A falta de estudo tradicional era compensada, no entanto, pela curiosidade aguçada sobre aquele ofício que, acreditava, mudaria sua vida. “Li quatro vezes Memórias Póstumas de Brás Cubas para entender o ritmo, a estrutura do texto, a divisão dos parágrafos.”

A amizade com o professor de teatro Márcio Januário, em 2013, foi decisiva, pois Geovani descobriu os mistérios de Clarice Lispector, a escrita sinuosa de Guimarães Rosa, a memorialística de Marcel Proust. Incentivado por Januário, participou da Festa Literária das Periferias, a Flup, quando começou a escrever mais profissionalmente – ficou em 3.º lugar e ganhou o Kindle. “Li muita parada naquele bagulho, isso abriu minha cabeça. Pirateava tudo: devo ter uns 300 livros baixados, sem pagar nada.”

A consciência de que seria um escritor se tornava mais clara e, como seus diversos empregos (animador de festas infantis, auxiliar de lanchonete e vendedor na praia) não lhe davam tempo para escrever, contou com o apoio da mãe e da namorada, que o ajudaram no sustento enquanto apenas criava. Foi com tal determinação que produziu os contos que impressionaram Antonio Prata, na Flip de 2017. Histórias como a de Rolézim, que abre o volume e impressiona pela linguagem. Para Geovani, a experiência é uma característica irredutível da vida, e não há experiência mais intensa do que a arte.

O SOL NA CABEÇA

Autor: Geovani Martins

Editora: Companhia das Letras

(112 págs.,R$ 34,90 impresso, R$ 23,90 e-book)

TRECHO DE ROLÉZIM

“Acordei tava ligado o maçarico! Sem neurose, não era…

…nem nove da manhã a minha caxanga parecia que tava derretendo. Não dava nem mais pra ver as infiltração na sala, tava tudo seco. Só ficou as mancha: a santa, a pistola e o dinossauro. Já tava dado que o dia ia ser daqueles que tu anda na rua e vê o céu todo embaçado, tudo se mexendo que nem alucinação. Pra tu ter uma ideia, até o vento que vinha do ventilador era quente, que nem o bafo do capeta.”

TRECHO DE ROLETA-RUSSA

“Paulo precisou descarregar o revólver antes…

…de começar o polícia e ladrão. Todo mundo queria estar no time dele, e era bom viver assim. Na hora de escolher um lado, hesitou. Normalmente, Paulo prefere disputar pelo time dos ladrões, porque é muito chato ficar correndo atrás dos outros o tempo inteiro (…) Mas dessa vez acabou escolhendo o time da polícia, pois desejava perseguir cada um de seus amigos, apontar a arma bem no meio de suas cabeças, apertar o gatilho…”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.