Em uma das poucas vezes que o capitão Jair Bolsonaro ocupou a tribuna da Câmara em seus tempos de deputado federal, ele declarou: “se eu chegar lá, não haverá mais um centímetro demarcado de terras para indígenas”. O capitão “chegou lá” há pouco mais de um ano e meio e em sua gestão como presidente do Brasil está indo além da promessa: em breve, é bem provável que indígenas é que não existam em quilômetros e quilômetros de chão. A política de descaso e desinformação promovida pelo governo na área da saúde, em meio à pandemia, está colocando diversas etnias sob risco de morte pela Covid-19 — e, sem exagero, pode-se falar em perigo de extinção. Na semana passada, somente na aldeia Yanomami, localizada em Roraima e mundialmente conhecida pela riqueza ambiental que a cerca, contavam-se mais de trezentos infectados. Ao mesmo tempo, o presidente insiste em empurrar goela abaixo desse povo um medicamento sem a menor comprovação científica — sim, é esse mesmo que o leitor já sabe, a tal da cloroquina, remédio do qual ele se tornou verdadeiro garoto propaganda. Pior: a ineficácia da cloroquina é comprovada no caso de Covid e os efeitos colaterais são tão danosos que podem levar o doente a óbito. Há figuras de grandiosidade imensa que estão hospitalizadas e altamente enfermas. São eles os caciques Raoni Metuktire e Yawalapiti Aritana, respectivamente líderes dos povos Kayapo e Yawalapiti. Ambos são reconhecidos em todo o mundo pela luta junto as suas etnias e também pela defesa da preservação ambiental. Raoni está em estado de profunda depressão e com úlceras intestinais, já Aritana foi contaminado pelo coronavírus. A pouca importância do governo dedicada a ambos estampa as primeias páginas dos principais jornais do planeta. Alguém no Poder Executivo liga para isso? Não.

ANÁTEMA Com Bolsonaro, a imposição virou política de Estado: na floresta só vale a voz dos militares (Crédito:TARSO SARRAF)

Assim se compõem os pilares que, atualmente, vão causando a extinção das etnias: desdém no campo da saúde e arcaica aculturação forçada

Nesse cenário, ao invés de uma força-tarefa do governo tentar salvar vidas, esposas de militares entram em territórios ianomâmis. O que elas fazem: tratam as mulheres como se fossem peças folclóricas e objetos de brincadeiras — pintam-lhes as unhas e os cabelos e lhes maquiam os rostos. Esses produtos são completamente estranhos às indígenas e podem lhes causar fortes alergias e intoxicações fatais. Parece que está se falando de quando os colonizadores chegaram ao País e dizimaram boa parte dos nativos transmitindo-lhes o vírus da gripe. Parece, mas não é. O salão de beleza nas matas foi montado no último final de semana, e o fenômeno não merece outro nome senão o da arcaica “aculturação forçada”. Fez-se, ali, uma cena no mínimo desrespeitosa.

“Aparentemente as esposas dos militares consideram as indígenas feias e mal cuidadas, uma visão completamente preconceituosa”, diz Moreno Saraiva, antropólogo do Instituto Socioambiental. “Fora a aglomeração que isso causou, e o risco de contágio pelo coronavírus”. Compõe-se, assim, os pilares que, atualmente, são os causadores do genocídio: a inoperância do sistema de saúde e o assistencialismo social. Deixando-se claro que tal inoperância não se dá diretamente e intencionalmente em relação a indígenas, não é que o governo invista dolosamente contra eles. Nessas duas áreas em questão, a gestão Bolsonaro é irresponsável com toda a sociedade brasileira. É claro, no entanto, que as populações mais vulneráveis se tornam igualmente mais expostas.

Somente no Amazonas mais de 2,3 mil indígenas foram infectados. Em um único mês os casos aumentaram 117%. Ainda assim, o presidente parece não se importar e por isso foi notificado pela Organização dos Estados Americanos: a entidade exige que o governo assegure proteção a esses povos e denuncia as equipes que lhes levam caixas de cloroquina — cem mil comprimidos desembarcaram no território dos ianomâmis. Nessa etnia, que vive isolada, 280 casos e quatro mortes foram confirmados. “O vírus chegou onde há o contato de não-indígenas com os povos”, diz Mauricio Ye’kwana, diretor da Hutukara Associação Yanomami, na região Auaris. “Não há diálogo. Os militares mandam e nós temos de aceitar”. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil reclamou ao STF do tratamento humilhante sofrido em uma reunião com o governo. “Com Bolsonaro essa tendência anti-indígena vem ganhando força”, diz Beto Marubo, membro da Coordenação da Organização Indígena Univaja. “Não há políticas públicas para nós”. Bolsonaro diz que “cada vez mais o índio é um ser humano igual a todos”, e já nessa frase pesam toneladas de preconceito. Mas vale lembrar um detalhe: se o “ser humano igual a todos” implica defesa do genocídio, os indígenas agradecem por não serem iguais àqueles que estão levando-os à extinção.

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