“Eu contenho multidões.” O verso do poeta norte-americano Walt Whitman calçaria como luva para se definir Machado de Assis. O escritor brasileiro era um só, mas, ao mesmo tempo, muitos. Havia o Machado autor de teatro, no início da carreira. O poeta pessimista; o romancista irônico e genial. Havia ainda o jornalista, o excepcional contista, o crítico, o cronista. E o funcionário público preocupado com as questões sociais do País no início do século 20.

É incrível imaginar que todas essas facetas pertenciam ao mesmo homem. Um ambicioso lançamento da editora Todavia organiza esses “Machados”, por meio de uma linha do tempo que permite acompanhar a evolução de sua trajetória, do humilde jovem esforçado a um dos maiores gênios de literatura mundial.

Todos os Livros de Machado de Assis parece apenas uma descrição do projeto, mas esse é o nome oficial da iniciativa inédita idealizada por Hélio de Seixas Guimarães, professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo.

Reúne os 26 volumes que o autor publicou em vida. Dizer que esse conjunto literário é um marco no mercado editorial brasileiro é quase desnecessário. Vêm todos em uma caixa só – até o início do ano que vem, quando poderão ser adquiridos em edições avulsas.

É fruto de um intenso processo de pesquisa que envolveu mais de vinte pessoas, entre designers, consultores e editores. Começa com a peça Desencantos, de 1861, e termina com seu derradeiro romance, Memorial de Aires, de 1908. Ao longo dos 47 anos de carreira, Machado consolidaria, na literatura nacional, posição semelhante a que nomes como William Shakespeare, Fiódor Dostoiévski, Dante Alighieri e Fernando Pessoa ocuparam em suas respectivas nações.

O conceito da coleção nasceu em 2018, quando Guimarães, especialista em Machado há anos, montou uma exposição de livros raros e primeiras edições do escritor na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, em São Paulo.

Ao organizar a mostra, com todos os livros em ordem cronológica, o professor da USP deparou-se com uma radiografia do seu processo criativo.

“Foi possível compreender como ele trabalhou para alcançar seu objetivo. Foi espantoso reler essas obras na sequência e perceber como sua trajetória é rica”
Hélio de Seixas Guimarães, organizador

Prossegue: “Ao passar por gêneros tão ricos e diversos, pensei que seria importante possibilitar ao leitor ver o autor se tornando o Machado que conhecemos, criando seu repertório de vocabulários, temas e situações.”

Genialidade de Machado de Assis ganha edição com 26 volumes e exposição
Casa em que Machado viveu em 1869, na Rua das Andradas, Rio de Janeiro: total abandono (Crédito:André Luis Mansur Baptista)

Viúvas e traições

A primeira coisa que chama atenção é a produção para teatro, vertente menos conhecida de sua carreira. Seus primeiros três livros são dedicados a textos para serem encenados, peças singelas construídas em um ato só.

Mas engana-se quem imagina que tratava-se de um formato que ele arriscou apenas no início da carreira. Machado voltaria à dramaturgia mais tarde, mesmo após seus grandes romances, o que mostra que considerava a qualidade do trabalho. É mais curioso notar o volume batizado de Terras, que trata de questões jurídicas de Machado enquanto funcionário público.

O mais interessante é vê-lo tateando temas que viriam a se tornar suas marcas registradas. Um bom exemplo é Desencantos, seu primeiro livro. Machado tem apenas 22 anos, mas escolhe como protagonista a viúva Clara de Sousa, obrigada a escolher entre dois pretendentes.

Impossível não lembrar de Fidélia, personagem de seu último livro, Memorial de Aires — outra viúva. O título, o oposto de “encantos”, já dá ideia do “pessimismo machadiano”, por exemplo.

A obra trata do desencontro amoroso, da desilusão, traição, temas que ele voltaria a abordar ao longo da carreira — com enfoques cada vez mais complexos e originais. Aos poucos, vemos o jovem Machado tornando-se Machado de Assis.

Objetos pessoais e obras raras em exposição

É tempo de Machado: além da publicação da coleção completa com 26 volumes, o escritor ganha uma exposição dedicada a sua trajetória no Itaú Cultural, em São Paulo. A Ocupação Machado de Assis faz um mergulho na vida e obra do autor, seu processo criativo e seu estilo de vida.

É composta por material cedido pela Academia Brasileira de Letras, instituição que ele fundou em 20 de julho de 1897, pela Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, Biblioteca Nacional e acervo do Itaú Cultural.

Genialidade de Machado de Assis ganha edição com 26 volumes e exposição
Olavo Bilac na casa onde Machado viveu: valorização do fundador da Academia Brasileira de Letras (Crédito:Divulgação)

“É um desafio expor a vida de um homem tão diverso, que possui uma imagem tão marcante no imaginário dos brasileiros. Cada pessoa tem um Machado para chamar de seu”, explica Galiana Brasil, gestora do Núcleo de Artes Cênicas, Literatura e Música do Itaú Cultural. “A ideia é trazer à luz algumas facetas menos conhecidas, como o enxadrista, o tipógrafo, o funcionário público. E mostrar que ele também era diverso nas letras, não apenas como romancista e contista, mas dramaturgo e poeta.”

A Ocupação reúne:
• fotografias,
• manuscritos originais,
• cartas, exemplares de sua obra e de seus escritores favoritos — entre eles, José de Alencar, Stendhal, Blaise Pascal, Schopenhauer —,
e primeiras edições de seus livros.

Há, ainda, vídeos com leituras dramatizadas de contos e poemas, depoimentos de estudiosos e publicações em jornais. Em torno de uma mesa e cadeira antigas, que remetem ao seu canto para escrever, estão objetos pessoais originais e réplicas penas, tinteiro, mata-borrão, ampulheta, pincinê, a sua caderneta de exercícios de grego e contratos de publicações, entre outros.

“Há uma área chamada “Machado Além da Prova”, que é voltada para alunos do ensino médio. Queremos que os jovens leiam seus livros de uma forma menos obrigatória, como ainda acontece, e mais divertida”, afirma Galiana. “Queremos que o vejam como ele foi: um grande contador de histórias.”