Aos poucos, vamos voltando à idade das trevas. É o que indica a nova orientação da política externa brasileira, definida pelo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, que decidiu ignorar o consenso internacional sobre questões de gênero e impor sua visão binária em que só existem o feminino e o masculino. Com isso, ele aproxima o Brasil dos países mais retrógrados do mundo em uma discussão contemporânea fundamental e transforma em princípio diplomático a ideia de que meninas vestem rosa e meninos, azul. Nas últimas semanas, circulou uma recomendação oficial entre os diplomatas reiterando o “entendimento do governo brasileiro de que a palavra gênero significa o sexo biológico”. A partir de agora, para o Itamaraty, o sexo designado no nascimento define o gênero e não mais importa como a própria pessoa se enxerga e se identifica – e nem como o diplomata pensa. Os representantes oficiais do País terão que incorporar essa ideia ao seu discurso e propagá-la mundo afora.

O governo de Jair Bolsonaro se esforça para negar a realidade e seguir direções equivocadas. A nova orientação diplomática do País representa um passo atrás em direitos individuais e humanos, além de contrariar a ciência que, há meio século, chegou ao entendimento de que sexo biológico não é igual a gênero. A posição do Itamaraty se apega numa orientação ultrapassada e ignora que o gênero não é só uma definição da biologia, mas também subjetiva, determinada pelo meio, pelas experiência e pela cultura. Ao incorporar esse discurso tradicionalista, a política externa brasileira reflete a posição de Bolsonaro e do ministro Araújo, que costuma atacar o que ele chama de globalismo, uma força que destrói as tradições nacionais e cria um mundo “onde não tem mais Nação, onde não tem mais família, onde você não tem mais homem e mulher”. A essência do trabalho diplomático do Araújo é combater esse globalismo, que tem entre seus pilares a ideologia de gênero e o reconhecimento da diversidade LGBTI.

“Você não tem mais Nação, você não tem mais família, você não tem mais homem e mulher” Ernesto Araújo,ministro da Relações Exteriores (Crédito:Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Um dos efeitos imediatos dessa nova orientação diplomática é que o Brasil deixa de ser um destino para refugiados perseguidos em seus países por causa de sua orientação sexual. Até agora o país tem sido receptivo para esse tipo de imigrante, mas essa situação tende a mudar. Em relação ao turismo, por exemplo, Bolsonaro declarou em abril, que “o Brasil não pode ser um país do mundo gay, de turismo gay. Temos famílias”, disse.Outro efeito da guinada ideológica do Itamaraty pode ser o enfraquecimento da candidatura brasileira para a presidência do Conselho de Direitos Humanos da ONU. A intenção de concorrer foi declarada pela ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. Desde os anos 1990, a ONU em uma resoluções adota o termo gênero em suas resoluções. Dificilmente um país com uma visão obscurantista ficará com esse cargo.

Marxismo cultural

A ideologia de gênero é um dos fundamentos do que Araújo classifica de marxismo cultural, pensamento que sustenta o globalismo e impõe, segundo ele, uma agenda de esquerda para a sociedade. No mesmo pacote dessa ideologia, que, na visão do ministro, se opõe ao conceito de família, está a proteção ambiental, considerada uma pauta da esquerda, e o “racialismo”, entendido por ele como um estímulo artificial das tensões raciais. Assim como reduz o gênero a aspectos sexuais, ele nega qualquer divisão racial na sociedade. Em vez disso, para enfrentar a complexidade social, o governo trata de simplificar a realidade e tenta compreendê-la baseado em conceitos do passado.

Para o Itamaraty, está decretado que o mundo agora se divide apenas entre meninos e meninas e essa ideia ultrapassada passa a ser promovida junto a outros países. Ainda que internamente esteja evoluindo no reconhecimento da diversidade e no respeito à identidade de gênero, será passada para o mundo a imagem de um lugar sectário e que despreza ou ignora a visão científica. A política externa retrocede claramente em direção a um caminho nebuloso. E o pior dessa história é que orientação da diplomacia sobre o assunto faz pensar que a maioria dos brasileiros pensa igual ao ministro.