Entre as diversas imagens do Brasil cultivadas pelos intelectuais — quero dizer, ensaístas, sociólogos, historiadores e escritores em geral —, uma sempre se destacou por larga margem. O termo-chave que a designava era “patrimonialismo”, consagrada pelo mestre Raymundo Faoro. Outros conceitos foram criados, mas o essencial não diversificava muito. O que se queria dizer é que uma pequena elite controlava a máquina do Estado e tudo o que ela representa em termos de poder e mantinha incólume a pirâmide distribuindo parte do butim aos “amigos do rei”.

O “patronato político” (outro termo de Raymundo Faoro) descrito no parágrafo anterior pode ser designado como o ápice da pirâmide, ou como o primeiro círculo concêntrico na estrutura do poder. Abaixo dele, ou como um segundo círculo, vicejava uma camada relativamente ampla que se autodenomina (va) “classe política”. A maioria dela era um bando de farsantes, que nada representavam senão a si mesmos e carecia totalmente de ideias ou objetivos sobre o país, mas havia uma parcela minoritária que acreditava piamente na possibilidade de ascender ao primeiro círculo, especialmente se a democracia não atrapalhasse e que, em lá chegando, reformaria radicalmente a sociedade, modernizando-a, tornando-a menos iníqua.

Longe de mim afirmar que a ascensão do “bolsonarismo” significa ipso facto uma virada antidemocrática, o que seria no mínimo uma leviandade, uma vez que ele nem tomou posse. Afirmo, porém, que a disputa eleitoral de outubro foi muito parecida com a imagem há décadas cultivada pelo segundo círculo. Não há dúvida de que ele assumiu ares de modernizador em contraposição à política “tradicional”. E, de fato, as elites políticas derrotadas, à direita e à esquerda, não parecem conscientes de que uma mudança estrutural importante esteja batendo às portas. As novas lideranças não enunciaram propósitos ditatoriais, mas recorreram a quadros militares numa extensão talvez nunca vista sob constituições democráticas em nosso País. Não ostentam o nacionalismo nem o intervencionismo ingênuo dos anos cinquenta, mas seria um patente exagero afirmar que tenham assumido uma postura liberal realista e convincente. Fiquemos, pois, por enquanto, com a convicção de que Deus às vezes escreve certo através de aparências tortas.

As elites políticas derrotadas, à direita e à esquerda, não parecem
conscientes de que uma mudança estrutural esteja batendo às portas


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