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O AUTOR E A OBRA Gay Talese, 84, esperou 35 anos para tornar pública a obessão de Gerald Foos, o voyeur que dá título ao livro: tema controvertido (Crédito:Foto: Divulgação)

Desprezível, assustador e sem mérito. Foi com essas palavras estampadas no título de uma crítica devastadora que o diário inglês “Telegraph” definiu “O Voyeur” (Companhia das Letras), o mais recente livro de Gay Talese. O também britânico “Guardian” definiu a obra como causadora “de grande mal-estar moral”. O livro conta a história real de Gerald Foos, que comprou um motel em uma pequena cidade do Colorado, nos Estados Unidos, com o único propósito de observar a vida sexual de seus hóspedes. Ele espionava o que ocorria nos quartos a partir de uma “plataforma de observação” construída com a ajuda de sua mulher sob o telhado do Manor House Motel. No teto de algumas das suítes havia uma pequena grade, supostamente para a circulação de ar, que permita a Foos ver e ouvir tudo que os clientes faziam. Mais que assistir, ele fazia anotações e até produzia estatísticas. Seu detalhado “Diário do Voyeur” foi iniciado em 1965. Em 1980, quando Talese anunciou que lançaria “A Mulher do Próximo”, um fascinante painel sobre a revolução sexual nas décadas de 1960 e 70, recebeu uma carta anônima em que o remetente afirmava ter registros que poderiam ser úteis no livro ou em uma obra futura. Passados 35 anos, a história foi publicada parcialmente na revista “New Yorker”, dando início à primeira controvérsia em torno de “O Voyeur”.

O PALCO Manor House Motel, no Colorado, onde o voyeur diz ter criado sua “plataforma de observação”: jornais dos EUA questionam a veracidade dos fatos narrados no livro
O PALCO Manor House Motel, no Colorado, onde o voyeur diz ter criado sua “plataforma de observação”: jornais dos EUA questionam a veracidade dos fatos narrados no livro (Crédito:Foto: Divulgação)

Historiador social

Se a violação de privacidade é suficientemente condenável do ponto de vista moral – como argumentam os jornais da Inglaterra – as críticas a Gay Talese feitas pelos grandes jornais de seu país questionam também a confiabilidade da história contada por ele. O “Washington Post”, por exemplo, verificou haver inconsistência em fatos narrados por Foos. Em resposta à crítica do jornal, o escritor afirmou: “Eu não deveria ter acreditado em uma palavra do que ele disse”. A admissão de dúvidas quanto à integridade da história bastou para levar à especulação de que o livro seria recolhido. Talese anunciou então que, caso fique comprovado que se trata de uma farsa, haverá reparações em uma eventual reedição.

Hoje com 84 anos, o americano Gay Talese é um dos pais do “novo jornalismo”, no início da década de 1960. Junto com Tom Wolfe, Norman Mailer e Truman Capote, ele provocou uma revolução na imprensa mundial ao escrever reportagens como se fossem romances, fornecendo ao leitor uma perspectiva mais ampla dos fatos e personagens. Embora com absoluto rigor na apuração, o estilo que consagrou Talese se caracteriza por dar à realidade uma aura de ficção, como no célebre “Frank Sinatra está resfriado”. Seu interesse pela história de Foos pode ser definido em uma frase: “Há momentos em que um voyuer faz inadvertidamente o papel de historiador social”. Pois em “O Voyeur”, Talese não apenas reproduz o relato de um pervertido que pode ser também um mitômano, a ponto de ter inventado boa parte do que contou. Longe de ser uma obra sem mérito, ela mergulha nas motivações de Foos para invadir a privacidade dos outros e traz à tona a descrição da sociedade que ele, o voyuer, captou por frestas insuspeitas. Ainda que de maneira ilegal e sem o consentimento de quem observava, ele teve a coragem de retratar sua época de maneira literalmente nua – algo que nenhum reality show atual é capaz de fazer tão bem.

Trechos

“Minha solução absoluta para a felicidade era poder invadir a privacidade dos outros sem que soubessem”

“Vi a maioria das emoções humanas, com todo seu humor e sua tragédia, levados até o fim”

“Muitas abordagens diferentes da vida seriam implementadas imediatamente se nossa sociedade tivesse a oportunidade de ser voyeur por um dia”

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