Rio – Meu filho caiu. Crianças caem com alguma frequência. E choram. E se levantam. E se esquecem da queda. E riem. E algazarram o dia. Mas a queda foi maior e mais dolorida do que as quedas da rotina. Sua expressão de dor doeu em mim. Seu choro calou forte em mim. Dirão alguns que é por ser meu primeiro filho. Meu único filho. Dirão que eu exagero nos cuidados que organizo. Não importa. O que import a é que o bracinho sem movimento, o olhar buscando alívio, o choro incontinente exigiam de mim ação.

Fui com ele ao hospital. Um braço quebrado e nada mais. Nada que não possa ser consertado. Pessoas gentis espantaram a minha aflição. Dá gosto ver médico que gosta de ser médico, enfermeiro que gosta de ser enfermeiro. Dá gosto ver gente que gosta de ser gente e que gosta de gente. Nos tumultos do hospital, encontrei alívio.

Leo, meu filho, tem apenas 2 anos. Minha mulher viajou a trabalho. Estávamos apenas nós dois, quando ele caiu. Meus pais moram longe.

Enquanto Leo chorava, um futuro passou por mim. Não sei por que fiquei imaginando os crescimentos necessários, as despedidas, as quedas de corpo e de alma, as cicatrizes. Ser pai é um ato de coragem. Há muitos amigos que resolveram não ter filhos. Por medo, talvez. Por apreensão com o amanhã. Mara e eu planejamos 3 filhos. Há ainda 2 para chegar. Sou filho único, aliás, deveríamos ser 2. Meu irmão morreu aos 2 anos. Atropelado. O dia se ajoelhou junto com os meus pais e chorou. Não foi justo. Não é justo. Se meu irmão ainda estivesse vivo,…

Leo leva o nome do tio que se foi sem quase ter chegado. Quem decide isso? Tem dia de morrer? Ou os atropelamentos antecipam a partida? Sou engenheiro de profissão. Gosto de consertar. Se eu pudesse, seria consertador de destinos.

Minha mulher diz que eu sofro muito com o sofrimento dos outros. Conheci o sofrimento e dele me tornei amigo, quando ainda nem entendia das amizades. O choro da minha mãe antecipava a chegada do dia. Foram anos de desconsolo. Meu pai espantava a dor para ser o seu apoio. História linda a dos dois. O tempo foi nos convencendo a prosseguir. E a saudade se colocou no lugar do desespero.

Quando meu filho nasceu, minha mãe brincou com a noite. E brindou a vida de um jeito tão delicado. Quando soube do nome do meu filho, me deu o abraço dos agradecidos. Partidas e chegadas. Foi dizendo que demorou a compreender que a morte não era mais forte do que o amor, que o seu filho prosseguiria com ela para sempre. Olhou ao longe e depois voltou. E rimos do que ainda iríamos viver.

Demorei a falar sobre o atropelamento, porque eu estava junto. Ele me seguiu. Eu, dois anos mais velho. Quando vi, não vi mais. Só o barulho e o silêncio.

Meu filho silenciou do choro. E dorme com um bracinho inerte e outro me tocando o peito. A confiança ilumina a vida. Observo o seu sono e imagino o seu sonho. Com o que sonham as crianças? Os pensamentos da noite se escondem de mim. É o sono chegando. É o respirar em paz do meu filho que me convida a desligar o dia. Tudo está bem. Tudo acaba ficando bem, quando compreendemos. O tempo é um bom professor. A memória nos cumula de aprendizados, de lembranças que embalam o futuro. Aprendemos com o ontem para acender o amanhã.

Amanhã, meu filho vai acordar bem. Vai reclamar do braço imobilizado, vai chorar algum choro e vai querer brincar comigo.

Amanhã, minha mulher volta de viagem. Gosto da saudade. A despedida incomoda, mas a chegada compensa.

Amanhã, vou pensar melhor nesta história, consertador de destinos. E vou fazer o que é possível dentro da engenharia da vida. Boa noite. 

Gabriel Chalita é professor e escritor