EXPEDIÇÕES Marcos Hurodovich: guia para interessados a velejar até o Cabo Horn, no sul do continente (Crédito:Divulgação)

O mercado náutico explodiu durante a pandemia e já se mostra consolidado: turismo, passeios, aluguel, compra e venda de barcos para lazer ou para morar estão em alta, movimentando marinas superlotadas, porque a demanda ultrapassou a infraestrutura no País. É muita gente no mar. O confinamento provocou a ânsia de experimentar um novo estilo de vida e o que se viu foi uma corrida atrás de lanchas, iates e veleiros. Das reuniões festivas em baías abrigadas, o interesse evoluiu até para a vontade de sentir a adrenalina que é cruzar o “abominável” Cabo Horn, lá no extremo da América do Sul, onde os Oceanos Pacífico e Atlântico se encontram. Por tradição, aquele que passa por esse ponto da navegação mundial “ganha o direito de colocar um brinco na orelha esquerda”, brinca Marcos Hurodovich, consultor naval e proprietário de um veleiro e um catamarã que aluga para passeios na costa brasileira ou, para quem preferir, expedições mais ousadas.

“O que aconteceu? Muita gente que estava trancada em casa, com medo da pandemia, começou a pensar que tinha dinheiro parado, podia morrer a qualquer momento e decidiu curtir a vida”, explica, observando que no Iate Clube do Rio de Janeiro dobrou o número de pessoas interessadas em alugar seus barcos para passeios. Fato atestado por Ricardo Baggio, o Kadu, assessor da Diretoria de Vela do clube, que aponta: como as aplicações financeiras deixaram de render na pandemia, o aluguel passou a ajudar na manutenção.

“Tem mais gente morando na marina do que cabe. Há barcos batendo uns nos outros” Sergio Ramos Matajusi, velejador e promotor de eventos

Norman MacPherson afirma que clientes procuravam donos de barco diretamente para alugar e conta que começou a trabalhar “com as duas pontas”, em 2013. Hoje, como CEO do Navegue Temporada, site que reúne 700 barcos de todos os tamanhos e preços, diz que a procura dobrou nos últimos meses. “O grande boom foi em setembro de 2020, quando o lockdown foi suspenso. Agora o movimento caiu um pouco, mas segue bem acima de 2019 porque se descobriu um novo tipo de lazer.” Norman lembra que no passado as pessoas tinham até ciúme do barco, mas agora há até quem compre apenas para alugar. “Alguns condomínios mantêm links diretos com empresas intermediárias, principalmente para festas de um dia. A prática virou moda para despedidas de solteira.”

Para Antônio Carvalho, o Tuneca, que opera com barcos mais sofisticados, a fuga para o mar começou com a pandemia, mas a partir daí o turismo náutico cresceu de maneira geral. Marcos Hurodovich concorda: “Só no entorno da ilha da Gipoia, em Angra, já circulam cerca de 300 lanchas. As pessoas gostam de ver o pôr do sol do mar.” Fundador da Bombarco e influenciador digital, Marcio Ishihara diz que “o negócio triplicou, para aluguel, compra e venda”. Até o Airbnb, popular aplicativo de aluguel de residências, abriu uma área dedicada aos barcos.

Duca Cassol e Roberta Montibeller (acima) vivem do canal no Youtube sobre a vida no mar; Mariana Borges (abaixo) vive entre o Rio de Janeiro e uma praia em Angra dos Reis (Crédito:Divulgação)

Eduardo Cassol, o Duca, que segue pela costa brasileira há um ano com a mulher Roberta Montibeller, sentiu que o interesse por morar a bordo é inspirado também por vídeos de velejadores no Youtube. “Hoje existem mais de mil canais. Eu mesmo vivo 100% do Odd Life Crafting, que tem 97% de sua audiência do exterior”, diz. “Morando no barco, as preocupações mudam: todo dia é preciso saber se tem água, se vai chover, ventar. Acordamos e já buscamos dados da climatologia.” Ele também fala dos congestionamentos, como na Marina Bracuhy JL, de Amyr Klink, em Parati, no Rio, ou na de Itajaí, Santa Catarina, que em dezembro somava 21 embarcações ancoradas, com 51 moradores.

Sergio Ramos Matajusi, que morou em barco durante cinco de seus 74 anos em busca de uma “injeção de liberdade, aprendendo rotas de navios e de baleias”, diz que esse é um ponto importante: a infraestrutura de marinas no Brasil não acompanhou a expansão exponencial do “mercado de vida a bordo”. Os preços subiram 30%, 40% e, mesmo assim, não há barcos para comprar — nem usados. “Tem mais gente morando em marina do que cabe, com barco batendo um no outro. O Brasil podia fazer como a Croácia, que tem toda sua costa estruturada para o setor náutico, com lazer, aprendizado e moradia. É um mundo muito rentável.”

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A coordenadora de inovação Carolina Araripe, uma carioca que mora em São Paulo, aluga um catamarã nas rápidas idas ao Rio para reunir os amigos e “dar aquele mergulho em água salgada, ao pôr do sol, lindo no fim de inverno”, como destaca. “Vejo no Instagram muita gente fazendo isso ou morando e trabalhando em várias praias, no formato “anywhere office” (“escritório em qualquer lugar”). Mariana Borges, velejadora e responsável pelo Expositor Náutico – “um hub de relacionamento do setor” –, comprou seu barco há menos de um ano e divide a vida entre a cidade e uma praia de pescadores em Angra. “Teve quem largasse tudo para morar a bordo, no ferro [ancorado], ou velejando sossegado, sem loucuras.”