Herança do período imperial, sempre alargado em benefício da elite dominante, o foro privilegiado está mais uma vez na pauta do Judiciário, agora para corrigir e ampliar uma decisão que o próprio Supremo Tribunal Federal (STF) havia deixado incompleta em 2018. A apenas um voto para formar maioria, a Corte deve decidir que presidentes da República, ministros, deputados e senadores que cometerem crimes durante os mandatos ou no exercício dos cargos não poderão mais se utilizar de artifícios para retardar ações penais ou inquéritos até a prescrição.

Uma vez abertos no STF, os processos lá serão julgados, mesmo em casos de renúncia, cassação ou de personagens que não tenham sido reeleitos.
Não haverá mais deslocamentos ou as idas e vindas de processos ao sabor da vontade dos réus.
A mudança vai impactar a vida de centenas de políticos, entre eles o ex-presidente Jair Bolsonaro, que apostava no deslocamento para a primeira instância dos cinco inquéritos em que é alvo.

Era a última porta por onde pretendia retardar seu inevitável encontro com a Justiça depois de uma série de crimes quer terminaram na tentativa de golpe nos dois meses depois da derrota, em 2022, e nos ataques do 8 de janeiro de 2023 contra os três Poderes.

Nos últimos dias, diante do cerco da Polícia Federal cada vez mais apertado, o ex-presidente voltou a insinuar que não aceitará a prisão, principalmente depois que o ministro Alexandre de Moraes negou a devolução do passaporte pedida pela defesa a pretexto de uma viagem que Bolsonaro pretendia fazer a Israel.

Ao se “hospedar” na embaixada da Hungria, despertando a forte suspeita de que tenha procurado uma alternativa de asilo logo após a operação Tempus Veritatis, o ex-presidente acabou demonstrando que pode tentar escapar, o que, na interpretação de juristas, poderia caracterizar obstrução de justiça, argumento que justificaria eventual prisão preventiva.

Defesa de bolsonaro

A defesa de Bolsonaro apresentou recurso pedindo o deslocamento dos inquéritos em que é alvo para a primeira instância. Seus movimentos estão alinhados com a estratégia do PL, que deu início na Câmara dos Deputados a uma ofensiva para desgastar o governo do presidente Lula e confrontar a provável decisão que manteria no STF os inquéritos e ações penais que devem ser abertas contra ele.

Apoiada nas alas conservadoras, a bancada está pressionando o presidente da Câmara, Arthur Lira, a colocar o tema na pauta através de duas frentes:
uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) acabando com o foro privilegiado de deputados no STF,
mas transferindo para outra instância, e outra, a 333/2017, que já passou pelo Senado e está pronta para ser votada na Câmara.

Esta propõe a extinção do foro privilegiado em todos os níveis. Em qualquer dos casos, Bolsonaro deixaria de ser julgado pelo STF, que é seu grande temor em função do longo período de ataques contra o Judiciário. Caso consolide mesmo o entendimento de que a perda do cargo ou do mandato não desloca os processos, o STF deve decidir também o destino do inquérito em que o deputado Chiquinho Brazão e seu irmão, conselheiro do TCE-RJ, Domingos Brazão, são apontados como mandantes do assassinato da ex-vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, em março de 2018. Quando o crime foi praticado, Chiquinho era vereador.

“A experiência recente revela que o Supremo está preparado para instruir e julgar ações penais complexas. Também comprova que esse exercício não ofusca suas demais funções institucionais.”
Gilmar Mendes, ministro do STF

Foro privilegiado: STF vota para acabar com impunidade; veja o que está em jogo
(Mauro Pimentel)

A proposta do líder do PL na Câmara dos Deputados, Sóstenes Cavalcante, visa reformular o sistema de julgamentos de congressistas, cujos processos passariam a correr nos tribunais regionais federais (TRFs), enquanto no STF ficariam apenas os casos dos presidentes dos Poderes. A proposta mantém, no entanto, a possibilidade recursos ao STJ e ao próprio STF, mas apenas para dirimir dúvidas constitucionais. Já a PEC 333 é mais simples.

“O ideal seria o presidente Arthur Lira colocar na pauta a PEC que já está na Câmara. Ela acaba de vez com o foro. Há alguma razão para os presos do 8 de janeiro estarem sendo julgados no STF?”, diz o deputado Alberto Fraga (PL), da tropa de choque bolsonarista.

Em comum, as duas propostas têm a finalidade de evitar o STF, que vem atuando no sentido contrário, ampliando o alcance da atuação da Corte. Até agora cinco ministros votaram — Gilmar Mendes, o relator, Cristiano Zanin, Dias Toffoli, Flávio Dino e Alexandre de Moraes —, todos eles favoráveis à extensão da atuação do STF.

O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, que havia pedido vista, mas já liberou o processo para julgamento a partir do dia 12, sempre foi contra o foro privilegiado, mas em 2018 ajustou sua compreensão sobre o tema.

Barroso chegou a dar declarações considerando que a prerrogativa gera impunidade, não se justifica numa República e desgasta o STF que, na sua avaliação, não era aparelhado para instruir ações penais.

“Quando está quase sendo julgado, o sujeito renuncia, (o caso) baixa para a 1ª instância e começa tudo de novo.”

Em 2018, quando ele foi relator no julgamento de uma questão de ordem em uma ação penal, seu voto estabeleceu que com a publicação do despacho para alegações finais sobre crimes ocorridos durante o mandato a competência dos tribunais superiores não será mais afetada, mesmo que o réu já não esteja mais no cargo que motivou a prerrogativa de foro.

Além de Barroso, faltam ainda votar os ministros Luiz Fux, Cármen Lúcia, Edson Fachim, André Mendonça e Nunes Marques.

Foro privilegiado: STF vota para acabar com impunidade; veja o que está em jogo
Para evitar o STF, Jair Bolsonaro apostava no deslocamento dos seus inquéritos para a primeira instância (Crédito:Allison Sales)

O foro privilegiado voltou à pauta do STF a pedido de dois congressistas, o senador Zequinha Marinho (Podemos) e a ex-senadora Rose de Freitas (MDB).

Marinho impetrou um habeas corpus num caso que corre na primeira instância em que é acusado da prática de rachadinha quando era deputado.
Rose pede anulação de um processo deslocado para a primeira instância, no qual é acusada de corrupção.

O relator, ministro Gilmar Mendes, argumentou que a prerrogativa, por não ser um privilégio pessoal, deve permanecer no STF mesmo com o fim do mandato dos parlamentares. “A saída do cargo não ofusca as razões que fomentaram a outorga de competências originárias aos Tribunais. O que ocorre é justamente o contrário. É nesse instante que adversários do ex-titular da posição política possuem mais condições de exercer influências em seu desfavor, e a prerrogativa de foro se torna mais necessária para evitar perseguições.”

A mudança pode impactar centenas de políticos, inclusive Chiquinho e Domingos Brazão, implicados no assassinato de Marielle Franco

Contra manipulações

• Mendes considera que no contexto político atual, com o País polarizado, a extensão da competência do STF calibra a Justiça. “A prerrogativa de foro se torna ainda mais fundamental para a estabilidade das instituições”, disse o relator, que foi seguido pelos outros quatro ministros. Mendes citou a velocidade das ações penais instauradas contra os autores dos ataques de 8 de janeiro, mesmo as tratadas no plenário virtual que, segundo destacou, ocorreram num ritmo bom, com os réus exercendo, sem sobressaltos, a ampla defesa. “A experiência recente revela não somente que o Tribunal está preparado para instruir e julgar ações penais complexas envolvendo detentores de prerrogativa de foro. Ela também comprova que o exercício dessa competência não engessa o funcionamento da Corte nem ofusca suas demais funções institucionais, como a jurisdição constitucional.”

• O ministro Cristiano Zanin acha que a mudança na compreensão do STF previne manipulações e manobras passíveis de acontecer por ato voluntário do agente público e fortalece os tribunais originários.

• Flávio Dino acrescentou que os crimes subsistem mesmo depois de cessada a permanência do acusado num cargo público. “Em qualquer hipótese de foro por prerrogativa de função não haverá alteração de competência com a investidura em outro cargo público, ou sua perda, prevalecendo o foro cabível no momento da instauração da investigação pelo Tribunal competente.”

• O ministro Alexandre de Moraes antecipou seu voto logo após o pedido de vista do presidente do STF. Ele destacou que nos sete anos que separam a decisão do STF de manter na Corte apenas os casos em que os réus foram acusados de praticar crimes no exercício dos cargos ou mandatos não há registro de que os julgamentos tenham se tornado mais rápidos em outras instâncias. Moraes justificou o voto no relatório pela necessidade de estabelecer um critério “focado na natureza do fato criminoso, e não em elementos que podem ser manobrados pelo acusado”.