Desde o seu primeiro dia à frente da Presidência do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a ministra Cármen Lúcia prometeu que não fugiria de suas responsabilidades, mesmo sabendo que encontraria condições adversas de trabalho e problemas crônicos a serem enfrentados. “O  que o judiciário não deu certo – e, reconheça-se, em muito não deu – há que se mudar para fazer acontecer na forma constitucionalmente prevista e socialmente justa. Não procuro discutir problemas. Minha responsabilidade é fazer acontecer as soluções necessárias.” É com este espírito proativo que a magistrada decidiu adotar como prioridade iniciativas de enfrentamento da crise do sistema carcerário.

Os massacres de Manaus e de Roraima, que terminaram com 94 presos mortos, evidenciaram o protagonismo de Cármen Lúcia neste tema. Desde as primeiras notícias sobre as mortes na capital amazonense, na manhã do dia 2, a juíza tem concentrado boa parte do seu tempo na análise e proposição de soluções ao caos na estrutura penitenciária brasileira. Dois de seus interlocutores mais frequentes têm sido o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, e o presidente da República, Michel Temer.

Com o primeiro, mantém conversas diárias, por telefone ou pessoalmente. Três dias após a matança em Manaus, os dois se reuniram no STF. Moraes apresentou à juíza o Plano Nacional de Segurança, que tem como um dos objetivos principais a modernização dos presídios. Uma semana depois, o ministro e a magistrada voltaram a se encontrar, desta vez acompanhados do diretor-geral da Polícia Federal, Leandro Daiello. A reunião, que não estava na agenda de nenhum dos três, durou cerca de quarenta minutos e aconteceu no prédio do Supremo. A presidente do tribunal queria mais informações sobre a situação nas cadeias do Amazonas.

O contato com Temer tem sido igualmente constante. Foi em uma conversa telefônica na noite da sexta-feira 6 que os dois combinaram o encontro pessoal, ocorrido no dia seguinte, na casa da ministra, em um bairro nobre de Brasília. O presidente foi sem carro oficial à residência de Cármen Lúcia e lá passou cerca de três horas. Na conversa – boa parte dela ocorrida na cozinha e regada a cafezinho feito pela própria magistrada -, os dois trataram, entre outros temas, da realização de um censo prisional, uma das ideias da juíza.

SEM NÚMEROS PRECISOS

No fim do ano passado, a presidente visitou alguns presídios para verificar in loco a situação dos detentos.  Em outubro, a ministra tentou conhecer a penitenciária de Alcaçuz, a maior do Estado do Rio Grande de Norte, onde recentemente havia tido uma fuga. Foi surpreendida com duas chocantes informações. Informalmente, recebeu o aviso de que nem ela nem ninguém poderia entrar nesse presídio porque os bandidos não deixavam. Ficou estarrecida. Depois, ao indagar sobre a quantidade de presos que haviam fugido, ouviu que era impossível precisar pois sequer sabiam a quantidade de encarcerados antes da debandada.

Ali, ela se deu conta de que os números oficiais nada têm a ver com a realidade cela adentro. Por isso, tomou a iniciativa de reunir-se com Paulo Rabello Castro, presidente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Procurou também o comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas. Pediu ajuda de ambos para fazer um censo do sistema carcerário. Segundo estimativas do IBGE, o trabalho poderia ser entregue em cerca de oito meses e custaria aproximadamente R$ 18 milhões.

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Na conversa, com seu jeito mineiro de ser, não pediu abertamente o dinheiro, mas indicou a Temer que, para tirar a ideia do papel, seria necessário o apoio da União. O presidente sinalizou que quer ajudar nesse sentido. A sugestão, porém, já recebe críticas. Especialistas acreditam se tratar de uma proposta um tanto ingênua, pois seria uma fotografia com validade de poucos dias, considerando-se a imensa dinâmica de entrada e saída de unidades prisionais. Crêem que ficaria imediatamente desatualizada. O ideal, acreditam especialistas ouvidos por ISTOÉ, seria informatizar o sistema, cadastrando quem entra e dando baixa em quem sai, já com informações sociais e também atualizando a situação jurídica do detento.

AJUDA DA LITERATURA

A outra frente de ação da ministra é dentro do próprio Judiciário. Uma de suas primeiras medidas depois dos massacres foi convocar uma reunião com presidentes de tribunais de Justiça de estados do Norte. Ela determinou também a criação de um grupo de trabalho, com a participação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão que preside, para acompanhar e fiscalizar as ações do governo do Amazonas em relação ao tema.

Na quinta-feira 12, presidentes dos Tribunais de Justiça do Brasil atenderam a uma nova convocação da juíza. Em reunião no STF que durou mais de cinco horas, eles discutiram a retomada de mutirões carcerários, iniciados durante a gestão do ministro da suprema corte Gilmar Mendes (leia entrevista ao lado) e um tanto negligenciados de 2010 para cá.

Executados por forças-tarefa integradas por juízes e servidores das Varas de Execução Penal, eles têm por objetivo agilizar o julgamento de presos provisórios, que correspondem a 40% da população carcerária do País, segundo dados do governo federal. A ministra deu prazo até terça-feira 17 aos tribunais para que disponibilizem magistrados e funcionários destacados a esse trabalho. Cármen Lúcia também conversou com os colegas de magistratura sobre a possibilidade de enviar juízes Brasil afora para dar treinamento e suporte às cortes. A presidente do STF cobrou ainda de seus colegas medidas para combater as facções criminosas em ação no País.

CONJUNTO Na semana passada, Cármen e Temer conversaram na casa da magistrada sobre a crise prisional
CONJUNTO Na semana passada, Cármen e Temer conversaram na casa da magistrada sobre a crise prisional

Em seu discurso de posse, a juíza citou um verso da música “Comida”, dos Titãs: “A gente não quer só comida. A gente quer comida, diversão e arte”. Fiel às suas ideias, Cármen Lúcia adicionou a riqueza da literatura ao seu pacote contra a crise carcerária. Preocupada com a ressocialização dos detidos, na mesma quinta-feira 12 em que se reuniu com seus pares, ela esteve com o ministro da Educação, Mendonça Filho. Os dois acertaram a criação de 40 bibliotecas, com obras brasileiras e estrangeiras que serão doadas pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), órgão do MEC. Depois, virão livros didáticos. Na terça-feira 17, a presidente do STF e o ministro se encontrarão novamente para definir o calendário de entrega do material.

AS MEDIDAS DA JUÍZA

CENSO PENITENCIÁRIO
O objetivo é fazer o perfil da população carcerária. Quantos são os presos, quantos foram julgados, quais estão em situação provisória, com quantas pessoas dividem as celas

MUTIRÕES CARCERÁRIOS
A ministra deu prazo até terça-feira 17 aos tribunais para que disponibilizem juízes e servidores. Eles deverão agilizar julgamentos de presos provisórios, população que corresponde a cerca de 40% da população carcerária do País

TREINAMENTO DE MAGISTRADOS
Cármen Lúcia demonstrou interesse em enviar 12 juízes para treinar colegas de tribunais regionais. Quer dar mais agilidade aos julgamentos e, assim, diminuir o efetivo de presos provisórios que superlotam as cadeias

ATRIBUIÇÕES DO CNJ
A ministra está fazendo um levantamento de todas as atribuições do CNJ que possam ser usadas para fortalecer o combate à crise do sistema carcerário

CRIAÇÃO DE BIBLIOTECAS
A presidente do STF acertou com o ministro da Educação, Mendonça Filho, a criação nos presídios de 40 bibliotecas, com obras brasileiras e estrangeiras que serão doadas pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), órgão do MEC. Depois, virão livros didáticos

“Os juízes não iam aos presídios”

O ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes (foto) presidiu o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) entre 2008 e 2010 e implementou um dos mais efetivos programas para, dentro das atribuições jurídicas, colaborar no combate ao caos do sistema prisional. Parte das medidas foi descontinuada.68


Quais foram os resultados do mutirão carcerário na época?
Em um ano e meio libertamos 22 mil presos provisórios, que corresponde a quase 10% do total de detidos provisoriamente hoje em dia. Encontramos um homem no Espírito Santo que ficou atrás das grades por 11 anos sem julgamento. O mesmo com outro, no Ceará, esperando há 14 anos por uma sentença. Também criamos o programa Começar de Novo, para tentar ajudar na ressocialização dos presos. Com o mutirão, fizemos com que os juízes de execução visitassem as cadeias. Eles não iam. Via que os promotores também não iam. O (governador do Maranhão) Flávio Dino foi pedir informações sobre os presídios do seu estado para o Ministério da Justiça. Veja, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) deveria ter esse tipo de informações também, mas não é o que acontece. O Ministério Público tem o dever também de fiscalizar as execuções penais, não só ser algoz do preso.

Custa caro colocar esse modelo em prática?
O custo é baixíssimo. Basicamente é a diária de um ou dois juízes destacados pelo CNJ para ir ao estado e coordenar a ação com os juízes regionais que já atuam. É muito mais uma questão de gestão do que orçamentária. Mas esta, obviamente, é uma medida de emergência para conter a “hemorragia”. Paralelamente, outras medidas devem ser tomadas.

Por que essas iniciativas não foram continuadas no mesmo ritmo?
Houve alguma descontinuidade dos projetos por razões de prioridade ou porque o CNJ não deveria, mas assumiu uma feição de seu presidente do momento, impondo suas convicções. E isso tem a ver com a debilidade de sua composição, sendo pouco representativa e com um diálogo assimétrico. Ou indicam nomes que realmente contam e fazem a diferença ou ficarão submissos (à vontade do presidente do CNJ). (Débora Bergamasco)

A opinião de outros especialistas

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As medidas sugeridas pela ministra Cármen Lúcia representam um enfrentamento direto com vistas principalmente ao combate imediato da crise no sistema prisional brasileiro. “A superpopulação carcerária no Brasil é desumana. O Ministério Público pode pleitear a aplicação de penas alternativas para diminuir o número de confinados”, afirma o jurista Ayres Brito, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal.

A médio e a longo prazo, as soluções passam pela revisão da legislação penal e sua aplicação de maneira mais contextualizada. “Hoje há o uso indiscriminado da prisão, o que só aumenta a violência”, afirma o jurista Oscar Vilhena Vieira, de São Paulo. “Não se faz distinção do crime. Prende-se o usuário, o vendedor de um ponto de droga e o líder da rede toda do mesmo jeito”, diz.

Na opinião do filósofo Roberto Romano (foto), professor recém-aposentado de Ética e Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é necessário que os juízes apliquem penas mais brandas para crimes menores. “A lei vale para todos, mas é necessário atenuar a sua aplicação conforme a circunstância”, diz. “O juiz não pode ser um burocrata.”


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