Como tudo na narrativa paralela do mandatário é estabelecido por decreto ou via medida provisória, bem capaz que dia desses ele lance um informe com o mesmo enunciado acima, no padrão do que costuma bravatear: “Não existe fome para valer no Brasil”. De viva voz já o fez. Em mais um dos delírios inomináveis, que não cansa de exibir, numa pororoca infindável de afrontas à realidade, consagrou o fim da chaga. Nos obscuros caminhos e conexões nervosas da mente do capitão as cenas cotidianas, denúncias e estatísticas contrárias a essa sua convicção não passariam de balela para prejudicá-lo. A mera ideia de que muita gente anda sofregamente procurando comida nos lixões de rua e caminhões de recolhimento por não conseguir bancar o básico em alimentos que garantam a sobrevivência – nem o essencial, nada mesmo! Não é figura de linguagem! – estaria, por assim dizer, no campo da fábula perversa, ardil diabólico e mentiroso para evitar que ele, o Messias “mito”, seja visto como “o salvador”, benfeitor dos pobres e oprimidos, imagem que lhe asseguraria, no seu entender, a reeleição. Porque, na prática, no universo fechado das prioridades que o movem, basicamente tudo converge no mesmo sentido. Bolsonaro não enxerga um palmo além do nariz sobre aquilo que não gosta de ver ou saber. Recusa-se a encarar problemas reais e acredita piamente não ser da sua conta tratar deles, muito embora a condição de governante que hoje exerce – sem a aptidão para tal ou entendimento do que representa a missão conquistada nas urnas – contemple o bem-estar social como fundamento número um. “Você não vê alguém pedindo pão na padaria”, avaliou em entrevista, numa de suas mais tonitruantes aberrações. Como é que é? Pode ficar espantado, prezado leitor, mas foi literalmente o que ele disse. Talvez para um turista estrangeiro acidental, em um dia de céu azul, belas paisagens, praias, protegido pelo desconhecimento previsível e preventivo, que estivesse por aqui de passagem, sem maiores alertas, levado por guias apenas aos mais reluzentes salões e endereços (em situações muito exclusivas e excepcionais), blindado dos dissabores do quadro que lhe cerca mesmo próximo ao hotel, quem sabe assim seria até aceitável tamanha desinformação e visão “Poliana” de um maravilhoso paraíso sem miséria. Mas para um chefe de Estado, em pleno comando da Nação, a ignorância ou maquiagem deliberada dos fatos são abjetas. Os mais de 33 milhões de esfomeados – número que dobrou em dois anos no seu governo – não são miragem. Estão ali na esquina, em qualquer lugar, mesmo e especialmente nas grandes cidades, nos metrôs, praças, túneis e avenidas, para não lembrar daqueles em regiões ribeirinhas, nos confins desse Brasil imenso, nos sertões e cerrados, esquecidos, abandonados, que morrem aos milhares por desnutrição sem serem notados. Aqueles que estão famintos no Brasil nem conseguem entender quando o presidente alega que “não tem filé mignon para todo mundo”.

Imagina! Jamais tiveram acesso a tal iguaria e muitos esqueceram até o sabor de uma carne de segunda. Tristeza no País tido e havido como o celeiro do mundo, a fome hoje flagela cerca da metade da população, perto de 120 milhões de habitantes que amargam algum tipo de insegurança alimentar, sem as três refeições diárias. Bolsonaro deveria ter compostura e vergonha na cara para não proferir tamanho desatino. Churrasco e cerveja na sua mesa não faltam. Ao contrário. Ele mesmo já se deixou fotografar em determinado momento – numa demonstração de opulência e exibicionismo nada adequada para um mandatário – ao lado de um fornecedor que lhe servia picanha de primeira, de boi da raça wagyu, de origem japonesa, vendida nas melhores casas do ramo ao preço de R$ 1.799 o quilo. Em outra ocasião não se fez de rogado e trombeteou: “pretendo beneficiar meu filho, sim, se puder dar um filé para ele, eu dou”. Na relação binária entre a família e o que parece compor o resto do povo, no seu modo de ver, vale a premissa: ao filho meu, filé mignon; aos demais, as sobras. Bolsonaro não se importa com o próximo. Nunca ligou para a sina sofrida da maioria. A gestão que desenvolve no Planalto é quase um escárnio. Para qualificá-lo como presidente não há sequer padrão de comportamento semelhante visto anteriormente no poder por aqui, tamanha a baixeza e despreparo da figura. Um ser humano desalmado, que tripudia da vida alheia – mesmo nas circunstâncias mais difíceis como na da pandemia da Covid-19, quando foi flagrado imitando, às gargalhadas, pessoas asfixiadas, com falta de ar, reclamando que não era coveiro, quando indagado sobre o que faria em relação às mortes. “E daí?”, provocou, exaltado, diante das cobranças. Em estado puro, Bolsonaro é um acinte. De uma psicopatia latente. Insensível, imoral, mostrou-se sempre um completo desqualificado para o posto que ocupa. Não foi apeado dali devido aos conchavos políticos que lhe garantiram sobrevida. Sobrevida essa maior do que a daqueles que não possuem nada no prato e ainda são menosprezados por quem deveria, em primeiro lugar, atender às suas carências mais elementares. Desculpe, capitão, mas a fome não corresponde a uma ilusão de ótica. Trate de respeitar os necessitados. Eles não podem ser encarados como mero rebanho a ser cuidado apenas na hora do voto.