São quatro histórias que retratam momentos expressivos do fluxo da vida. Na primeira, uma mulher descobre que está perdendo os sentidos, a começar pela audição; em seguida, homem sofre acidente de carro em estrada deserta e, preso às ferragens, tenta manter a consciência enquanto espera ajuda. A terceira narrativa mostra uma corredora da São Silvestre que, para vencer a maratona, é tomada por uma série de pensamentos alucinados, que tanto tratam do sentido de sua vida como de toda organização mundial. Finalmente, o quarto personagem é um homem que tenta meditar em meio ao caos urbano.

“O conjunto se transforma em uma peça que vai da superação à transcendência”, comenta Monique Gardenberg, diretora de Fluxorama, que estreia nesta sexta-feira, 22, no Sesc Ipiranga. São quatro monólogos escritos por Jô Bilac em épocas distintas (entre 2009 e 2016) e inspirados em movimentos cíclicos como as quatro estações. “São relações existencialistas despertas pelo sensorial”, conta Bilac, autor de outros trabalhos consagrados como Cachorro! e Conselho de Classe. “Nos quatro textos, os personagens estão em uma condição física específica, que exige a atenção do corpo e o controle da mente. Em cada solo, esse limite físico se apresenta de forma diferente – no quarto solo, no qual um personagem tenta meditar, também existe um limite físico, um esgotamento por conta dessa articulação dialógica entre dentro/fora, como alma e matéria.”

Foi justamente essa sensação de desamparo vivido por personagens que, naquele instante, estão relegados à própria sorte, que interessou Monique a assumir o projeto. “Começo a ensaiar outra peça na semana que vem, que vai envolver Bruno Mazzeo, mas esses textos do Jô se revelaram desafiantes demais para eu ignorar”, conta a encenadora que, por conta do tempo escasso, convocou atores com quem já trabalhou e, portanto, com quem desenvolve uma carinhosa afinidade artística. É o caso de Caco Ciocler, que vive Medusa, o homem que medita, e Marjorie Estiano, que interpreta Valquíria, a corredora da maratona. “Completei o elenco com Luiz Henrique Nogueira, cujo trabalho também conheço e admiro muito – ele é Luiz Guilherme, o homem acidentado -, e com Juliana Galdino, atriz com quem sempre quis trabalhar, que faz Amanda, a mulher que sofre a misteriosa doença degenerativa que a deixa inicialmente surda.”

Monique já trabalhou com monólogos em Baque (2005), mas agora o desafio é maior. “Em Baque, descobri que era importante criar partituras, ou seja, exigia uma direção mais detalhista, especialmente ao cuidar da musicalidade da fala”, conta. “Monólogo tem o desafio de manter a atenção da plateia apenas com a palavra.”

O detalhe inspirou, de fato, o trabalho criativo de Jô Bilac. “Escrevo de ‘ouvido’, ligado na musicalidade das palavras, na respiração que a pontuação sugere”, observa. “Em Fluxorama, essa relação é mais radical, pois comecei motivado a escrever um texto que não tivesse indicação de cena ou descrição de personagem. Sugerir que o personagem está respirando, sem precisar descrever. A formatação das palavras, a organização no espaço, a pontuação, tudo a favor dessa comunicação sensorial com o ator e o diretor.”

Os quatro monólogos se entrelaçam até formarem um único espetáculo, criando um elo entre o subversivo social e a intimidade da mente. “O ponto de partida do texto é o pensamento, aquele que é muito íntimo dentro da máxima ‘penso, logo existo’. O pensamento é performático, atravessado pelo dentro/fora. É incontrolável, com uma narrativa própria. Os fluxos dos pensamentos dos quatro personagens, apesar de solos, contracenam, como um quarteto de cordas afinando os instrumentos, na dissonância transversal.”

A relação com a trilha sonora, portanto, seria essencial para o espetáculo, o que não é surpreendente em trabalhos assinados por Monique Gardenberg, especialista em promover o casamento ideal entre melodia e palavra. “Como a peça fala sobre o fluxo do pensamento, algo incessante, sem trégua, pensei em uma trilha que acompanhasse no ritmo”, conta ela, que convidou seu amigo Philip Glass para cuidar da partitura. Conhecido por partituras minimalistas compostas especialmente para o cinema, Glass já criou para o palco, como no recente The Crucible, que estreou em Nova York em março.

“Depois de assistir a essa montagem, tive a certeza que Philip seria o compositor ideal para a trilha de Fluxorama”, observa Monique que, ao convidá-lo, recebeu uma resposta animadora. “Como meu tempo era curto, ele me enviou diversas composições que tinha guardado e eram inéditas. Ao ouvi-las, fiquei surpresa: parecia que Philip tinha acompanhado nosso ensaio e criado especialmente para a peça.” De fato, ao ouvir, o público vai notar como a música reforça a agonia do pensamento.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.