Fim da Segunda Guerra: um trauma presente 80 anos depois

Fim da Segunda Guerra: um trauma presente 80 anos depois

"EmHoje com 99 anos, George Leitmann esteve entre os soldados americanos que libertaram a Alemanha do nazismo em 1945. Oitenta anos após o fim da guerra, ele alerta para o risco do retorno do fascismo.Quando George Leitmann veio à Alemanha pela primeira vez, ele tinha 19 anos. Foi na primavera de 1945, pouco antes do fim da Segunda Guerra mundial na Europa. Em todas as frentes, soldados americanos, soldados britânicos e o Exército Vermelho soviético avançavam para libertar a Europa dos crimes do nazismo sob Adolf Hitler.

Quando Leitmann e seus companheiros do 286º Batalhão de Pioneiros do 6º Exército dos EUA pisaram em solo alemão, a guerra ainda estava em andamento. A situação nos vilarejos do sul da Alemanha era confusa. "A linha de frente era extremamente fluida", recorda. Nos últimos meses da guerra, a Wehrmacht e a organização paramilitar Schutzstaffel (SS) lutavam com todas suas forças para tentar salvar o regime nazista da ruína.

George vivenciou muitos horrores da guerra. Alguns jamais o abandonaram.

"Chegamos a um subúrbio", lembra ele quase 80 anos depois, "e havia de 15 a 20 crianças. Todas eram meninos. Eles tinham entre 10 e 12 anos." Mortos. Haviam sido enforcados. "Bati na porta mais próxima e perguntei o que havia acontecido." Os moradores lhe contaram que membros da notória Waffen SS alemã estavam por trás da matança. "Eles aparentemente reuniram as crianças locais e deram a cada uma delas uma Panzerfaust [arma antitanque]. E a ordem de atirar na chegada do primeiro tanque americano."

Quando os tanques chegaram, porém, as crianças fugiram. "Um dia depois, a SS voltou, reuniu os meninos e os enforcou em árvores. Eles enforcaram suas crianças!" Mais tarde, historiadores documentariam vários outros assassinatos de civis alemães que se recusavam a lutar, cometidos pela Wehrmacht e pela SS, os chamados Crimes da Fase Final.

Ao longo da Segunda Guerra, os alemães assassinaram milhões de pessoas na Alemanha e na Europa – além de matarem suas próprias crianças. "É essa imagem que nunca esqueci: os corpos das crianças balançando ao vento", recorda Leitmann.

Descrença na humanidade

Essas impressões de guerra deixaram marcas duradouras em George Leitmann. "A imagem das crianças foi tão profunda para mim que comecei a duvidar da humanidade. Talvez o que mais me perturbe até hoje seja o fato de nós, enquanto seres humanos, não podermos confiar em nós mesmos. Pois o que motivou a SS não era racional."

Tais questionamentos perturbam os pensamentos de Leitmann, soldado e libertador americano, ainda que os crimes tenham sido cometidos por outros. Talvez esta seja uma das grandes diferenças entre as biografias das vítimas do nazismo e as dos perpetradores: nas décadas seguintes ao fim da guerra, quase todos os nazistas e seus cúmplices negaram sua própria responsabilidade por uma guerra que custou a vida de mais de 60 milhões de pessoas.

Da mesma forma, eles negam seu apoio a uma ideologia fascista que divide a vida humana entre aquelas que valem ou não a pena serem vividas – a mesma que resultou no assassinato em escala industrial de judeus europeus, sinti e roma, e inúmeras outras pessoas. Os alemães atiraram, usaram gás lacrimogêneo e mataram 1,5 milhão de crianças apenas – a maioria delas porque eram judias.

George Leitmann não foi apenas um soldado americano que lutou contra a Alemanha nazista. Nascido em Viena, capital da Áustria, ele próprio é um sobrevivente do Holocausto. Quando os nazistas tomaram sua terra natal, sua família judia decidiu emigrar em 1940. George, sua mãe e seus avós conseguiram vistos para os EUA, mas seu pai, Josef, não. Ele acabou então fugindo para o que então era a Iugoslávia. Quando tudo parecia estar seguro, George e o resto de sua família embarcaram em um navio para os EUA. Ele nunca mais veria seu pai.

A extensão dos crimes alemães jamais saiu de sua memória. Depois da guerra, Leitmann seguiu carreira acadêmica nos EUA, lecionando por muitos anos como professor de engenharia na universidade de elite de Berkeley, na Califórnia, onde receberia inúmeras honrarias e prêmios.

Berkeley continua sendo sua morada ainda hoje. É na cidade californiana que ele vive atualmente com sua esposa Nancy, de 100 anos, ambos na mesma casa de repouso. Mas a inquietude não o deixou. "Eu sempre me pergunto: como pessoas tão instruídas como os alemães foram capazes de fazer algo tão ruim em tão pouco tempo?"

Sua pergunta, assim como tantas outras, segue sem resposta. Nenhuma delas o abandona. Elas ficam rodeando seus pensamentos. "Sempre que eu conhecia alemães, me perguntava o quão culpados eles ou seus pais eram. Mas responder a essa pergunta com a suposta culpa de seus ancestrais parecia, do ponto de vista científico, inapropriado." George crê ter sido uma pessoa muito controlada ao longo de toda a sua vida. "Nunca perdi a cabeça, nunca levantei a voz. Sempre achei que poderia cumprir melhor minha missão se me controlasse."

Em busca do pai

Mas quando, com apenas 18 anos, ele decidiu se voluntariar para o serviço militar em seu novo país, os EUA, ele seguia também um impulso: a incerteza sobre o destino de seu pai. Sua luta contra os alemães tornou-se assim também uma busca, algo que o diferenciava de muitos de seus camaradas.

"Quando chegamos no campo de concentração de Kaufering, perto de Munique, meus camaradas ficaram horrorizados. Estavam enojados com as ações dos alemães. Mas, para mim, imediatamente surgiu uma conexão com meu pai. Quando encontrávamos pessoas libertadas, eu sempre tinha a esperança de rever meu pai."

O campo de concentração de Kaufering, na Baviera, era composto por onze campos diferentes. Os nazistas deportaram 23 mil pessoas para lá. A maioria deles eram judeus do Leste Europeu que tiveram que realizar trabalhos forçados para a indústria de armamentos alemã. Ao fim, foram todos assassinados – ou, como se dizia, "exterminados pelo trabalho".

Quando George Leitmann entrou no campo libertado em abril de 1945 foi como se "um mundo do Inferno de Dante" se abrisse para ele. "Havia cadáveres por toda parte. Muitos deles ainda fumegavam porque os alemães tentaram queimá-los. Mas, como as pessoas eram apenas pele e osso, [os corpos] não queimaram." Imagens como essa o perturbam até hoje durante a noite.

"A frieza e a crueldade recaem sobre todos nós"

Atualmente, no local do antigo campo de concentração, um memorial é operado pela Fundação Europeia Memorial do Holocausto – e George Leitmann é membro honorário. Em 27 de abril de 2025, vários convidados se reuniram lá para celebrar o 80º aniversário da libertação. George, porém, não pôde comparecer, pois a viagem desde a Califórnia seria muito longa e muito difícil para ele.

O serviço memorial foi marcado pelo luto pelos mortos. Mas também por preocupações com o futuro: a ascensão do grupo extremista de direita AfD na Alemanha, a ascensão de Donald Trump nos EUA, a guerra de agressão russa na Ucrânia.

O fantasma do fascismo está de volta – o poder dos fortes, nas palavras do historiador vienense Florian Wenninger: "Elon Musk considera a empatia a maior fraqueza da civilização ocidental. Apesar disso, devemos permanecer firmes. Se o comportamento social, se o senso de justiça e a compaixão forem deliberadamente atacados, então fica claro, por outro lado, que a frieza e a crueldade podem se voltar contra todos nós, ameaçar a todos nós."

George Leitmann também se mostra preocupado com a política atual. "Que um homem como Donald Trump possa se tornar presidente é algo impressionante. O fato de grandes segmentos da sociedade apoiarem ideias fascistas é perturbador. Culpar certos grupos de pessoas por algo sempre causou infelicidade. "

George Leitmann completará 100 anos em maio de 2025. Apesar de todas as dificuldades, ele avalia que teve uma vida boa: pôde viajar, constituir família e conhecer pessoas interessantes. Mas ressalta que a velhice também pode ser um fardo. "Tente não ficar tão velho", diz, balançando o dedo indicador. "Isso não é brincadeira. Estou falando sério."

Quanto ao destino de seu pai, ele só teve conhecimento muitos anos após o fim da guerra. Foi em um campo na Iugoslávia: seu pai, assim como centenas de outros, foi fuzilado pelos alemães. Simplesmente por ser judeu.

Até hoje, George Leitmann imagina como terão sido os últimos minutos da vida de seu pai. É um pensamento que lhe acomete todos os dias.