Faz quatro ou cinco anos que o fenecimento da democracia representativa vem sendo previsto pelos principais jornais e revistas de todo o mundo. A democracia não morreu, mas o debate segue pujante, e não é para menos.

No dia 8 de janeiro tivemos em Brasília a arruaça bolsonarista, disfarce para o objetivo real, que seria o golpe. Logo em seguida, no Peru, outro episódio no gênero, que entrará para a história mais pela quantidade de tiros disparados que pelo poliédrico confronto de golpismos, que poucos tentaram decifrar. Poliedro parece ser mesmo a palavra, pois já não se trata de um privilégio do Terceiro Mundo: mesmo nos Estados Unidos, aposto que alguém logo cunhará o substantivo “golpo-trumpismo”.

O que distingue esse gênero de cassandrismo político é que ninguém parece disposto a enfrentar a questão central. Extinta a democracia, como iria o mundo organizar o convívio de oito bilhões de indivíduos? Só me ocorrem duas ideias. A primeira é que alguns bilhões tentariam matar outros tantos bilhões (“o homem é o lobo do homem”, lembram-se?). A outra é que o único país quiçá capaz de pôr ordem nesse mundo em escombros é a China. Destruídas as democracias, nosso admirável mundo novo passaria a fazer parte do grande Leviatã asiático.

Se as democracias forem destruídas, nosso admirável mundo novo passará a fazer parte do território do grande Leviatã asiático: China

A China, como sabemos, precisa alimentar diariamente seu quase um bilhão e meio de habitantes, o que só consegue comerciando civilizadamente com centenas de países. Simplesmente não pode assumir a incumbência adicional de pôr ordem no mundo valendo-se dos métodos de que se vale no plano doméstico. Este, como ninguém ignora, é um férreo totalitarismo. Marcação homem a homem, como se diz em futebol. A um grupo que queira se distrair numa mesa de bar recomenda-se falar bem baixo caso quando se refiram a Taiwan, ao Tibet ou a Hong-Kong.

Mas é só uma parte da história. Pelos relatos que leio – sou bem fraquinho em sinologia – um habitante das pequenas comunidades interioranas precisa de autorização individual caso queira viajar a uma das cidades grandes. Um passaporte individual, se me compreendem. Estima-se que o número de cidadãos proibidos de cruzar essa fronteira interna é algo entre seiscentos e oitocentos milhões. Se um cataclisma qualquer facilitasse a entrada de metade deles em Shanghai ou Beijing, é fácil imaginar que a marcação homem ficaria bem difícil e que o salário médio já bastante miserável dos que vivem lá sofreria um tranco considerável. Por quantas décadas ou séculos mais o Leviatã se manteria de pé?