31 de outubro de 2002. Em plena noite de Halloween, o Dia das Bruxas, uma das histórias de terror mais assustadoras que o Brasil já viu acontecia no interior de uma mansão da zona sul de São Paulo. Uma garota, ajudada por seu namorado e pelo irmão dele, planejara o assassinato dos próprios pais. Quase duas décadas depois, o caso vai parar nas telas. Que tipo de filme renderia uma história como essa, cujo elenco tem apenas vilões?

O aguardado filme sobre o caso Suzane von Richthofen, na verdade, são dois: “A Menina que Matou os Pais” e “O Menino que Matou Meus Pais”, lançados simultaneamente na plataforma de streaming da Amazon Prime Video. No primeiro, Suzane é uma garota mimada que odeia a família e manipulou Daniel Cravinhos e seu irmão Christian para ajudá-la a se livrar da mãe repressora e do pai agressivo e assediador. No outro filme, ela é uma garota ingênua e pura, uma vítima que sucumbiu ao plano maligno da família Cravinhos, de olho no dinheiro dela.

Qual será a versão verdadeira? Provavelmente algo entre essas duas narrativas. O projeto dirigido por Maurício Eça e roteirizado por Ilana Casoy e Raphael Montes apresenta uma forma original e inovadora de abordar o “true crime”, gênero cada vez mais popular no Brasil.

A decisão de contar as histórias em dois filmes, cada um com um ponto de vista, surgiu dos roteiristas. Por opção estética – ou por medo de processos –os filmes são fiéis aos depoimentos que os acusados deram ao tribunal. Como poderia haver um único filme, portanto, se os testemunhos de Suzane e Daniel apresentam versões opostas? Embora complementares, os filmes podem ser assistidos individualmente, o que reforça o discurso sobre o “poder das narrativas” – um câncer que existe há muito tempo, mas que voltou a dominar o mundo graças a personagens exóticos como Donald Trump, que defendia o conceito de “fatos alternativos”. Na era das redes sociais, os conceitos de “verdade” e “opinião” passaram a ser vistos como equivalentes, contrariando a própria realidade.

O filme de Suzane, obviamente, não vai tão longe. No fundo, as duas histórias poderiam ser reais. Uma garota com o background social de Suzane poderia acrescentar em sua versão; um garoto de classe média baixa, que já enfrentou algum tipo de preconceito por sua condição social, poderia tomar a história de Daniel como verídica.

“A verdade é algo que nunca saberemos, porque não estávamos lá. Talvez a resposta esteja na mistura das duas versões”, afirma a atriz Carla Diaz, que interpreta Suzane. “Os filmes são baseados nos autos do processo, por isso é compreensível que cada personagem tente defender o seu lado.” A atriz afirma que sentiu uma forte responsabilidade ao interpretar uma personagem real. “Foi um dos crimes mais estarrecedores do Brasil. Eu nunca tinha vivenciado algo assim, então foi muito desafiador. Ainda mais atuando duas vezes, com duas visões diferentes.”

Para sustentar a ideia de dois filmes, Maurício Eça teve que se render a versões maniqueístas dos protagonistas. Ou o casal era formado por uma psicopata manipuladora e um garoto ingênuo e apaixonado, ou por uma virgem romântica e um assassino cruel e interesseiro. O que não se discute é o resultado da ação conjunta desses dois, não importa qual dos pontos de vista está correto: os pais de Suzane realmente foram assassinados brutalmente. Dizer que um deles é mais culpado que o outro é apenas privilegiar a opinião e esquecer a realidade. Ambos são assassinos cruéis e culpados.

“Como atores, não podemos induzir os espectadores a tirar conclusões. O julgamento foi feito pela Justiça e não cabe a nós opinar sobre a história real”, afirma Leonardo Bittencourt, que interpreta Daniel Cravinhos. “Fomos corajosos ao abraçar esses papeis, acho que muita gente que gostaria de ter feito. É uma grande história, e é de grandes histórias que são feitos os atores. Temos obrigação de contar o enredo de maneira fiel, como está no processo. Não interessa se são personagens odiados, nosso objetivo é contar a história deles da melhor maneira possível.”

Do ponto de vista cinematográfico, os dois filmes são bons e alcançam o objetivo ao qual se propõem: transformar em imagens a trama absurda que levou três adolescentes comuns à decisão irreversível de cometer um assassinato tão bárbaro. O desafio de Maurício Eça, que ele realizou com talento, era contar de maneira crível não apenas uma, mas duas histórias. Os filmes funcionam porque, ao mostrar o dia a dia das famílias Richtofen e Cravinhos, Eça coloca na tela cenas que o Brasil inteiro vem imaginando desde então: como foi a manhã da família von Richthofen no dia do crime? Como o jovem casal chegou à decisão de matar Manfred e Marisia? Como puderam acreditar que um plano tão idiota daria certo?

“Eu queria fazer esse filme há um bom tempo. Adoro o gênero “True Crime”, curto tentar entender a mente humana. O grande desafio era como contar essa história. A grande sacada é que na tela elas se tornam histórias complementares. É um grande quebra-cabeças”, afirma o diretor Maurício Eça. “Os dois filmes funcionam bem juntos. Ele nos ajuda a questionar não apenas quem está falando a verdade, mas o que é a verdade em si. O Daniel escolheu se defender contando algumas histórias que, para ele, eram importantes. Suzane, por sua vez, escolheu outros episódios, que ela achava que poderiam livrá-la.”

O co-roteirista Raphael Montes explica como nasceu a ideia para as duas histórias: “Quando a proposta do filme chegou para mim e para a Ilana, nos perguntamos qual seria a abordagem correta. Como o caso já tinha sido muito noticiado, optamos por mostrar o que aconteceu até chegar ao momento do crime. “Quando fomos ver as versões, percebemos que elas eram opostas. Achamos então que seria interessante contar a história da perspectiva das duas visões”, afirma Raphael. “Foi aí que decidimos escrever dois roteiros.”

O formato “true crime”, versão ficcional de crimes reais, ganhou força com o streaming. Além dos filmes sobre o caso Suzane, está disponível na Netflix uma série sobre Elize Matsunaga, acusada de ter matado e esquartejado o marido. Outros casos populares, como o da família Nardoni e o da atriz Daniella Perez, devem ser ganham versões para o streaming em breve. Nos EUA, o formato “True Crime” é popular há décadas. Lá, praticamente qualquer crime que ganha atenção midiática torna-se filme ou série. O caso do serial killer Charles Manson, só para citar um exemplo, já ultrapassou as dez versões. No Brasil, o número de crimes horrorosos é tão grande que seria possível alimentar o mercado audiovisual com uma lista enorme de possíveis adaptações para o formato “True Crime” – infelizmente, claro.