Seria injusto dizer que o cinema brasileiro não se ocupou do golpe de 1964 ou dos efeitos da ditadura sobre a sociedade. Não só o fez como o elegeu por tema logo após o acontecimento histórico. Já no ano seguinte, 1965, aparecia “O Desafio”, de Paulo César Saraceni. Através da história de um jornalista de esquerda (Vianninha) que tem um caso com uma burguesa casada (Isabella), Saraceni recria o clima de desespero, mas também de resistência, que se armava no imediato pós-golpe. Com cenas documentais, contém uma longa sequência do show Opinião, com a então novata Maria Bethânia cantando “Carcará”, canção de protesto de João do Vale, aquela do “pega, mata e come”.

Em 1967, é lançada a obra-prima do período, “Terra em Transe”, de Glauber Rocha. Em forma alegórica, pretende não apenas dar início a um processo de “digestão” do golpe em andamento, como examinar algumas estruturas da sociedade brasileira que faziam possível este e outros golpes e tornavam irrisória a resistência de setores progressistas da sociedade a eles. Cinquenta anos passados, Terra em Transe é, ainda, a mais radical radiografia da nossa “alma social”, dos fatores profundos que nos condenam, até hoje, a ser como somos. Os meetings políticos transformados em carnaval, o populismo caricato, a traição das elites, o vezo autoritário, o tortuoso relacionamento entre intelectuais e povo – tudo está lá, na genial intuição de Glauber. Revê-lo é contemplar o Brasil da sua época, e também o Brasil de hoje.

Após 1968, com o fechamento total do regime depois do AI-5, o cinema, como outras artes, refugiou-se no domínio da alegoria para driblar a censura. Em tempos de trevas, as luzes remanescentes piscam às escondidas. Desse modo, um diretor consagrado, como Nelson Pereira dos Santos, falava do Brasil em filmes sinuosos como “Azyllo Muito Louco” e “Como Era Gostoso Meu Francês”. Joaquim Pedro de Andrade, em “Os Inconfidentes”, usava os Autos da Devassa como roteiro e falava menos de Tiradentes e da Minas do Brasil Colônia que das lutas pela liberdade no país do seu próprio tempo, dominado pelos generais. Esses deslocamentos temporais e formais serviam para iludir censores, mas também para fazer acenos à luta política.

Com a proximidade da redemocratização, o tom começa a mudar. Ao transcrever o livro de Graciliano Ramos, o mesmo Nelson Pereira dos Santos faz do seu “Memórias do Cárcere” um hino duro da resistência e da busca da liberdade. Nessa mesma época, também vem à luz aquele que é o filme-símbolo desse período – Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho. Iniciado como ficção, foi interrompido pelo golpe, em 1964. Tentaram destruir os negativos e os personagens foram perseguidos. Tudo voltou à tona quase 20 anos depois, quando as filmagens foram retomadas, agora como um documentário que buscava as figuras perseguidas pelo golpe. Pelo reencontro de Dona Elizabeth Teixeira, a viúva do líder camponês que era o herói do primeiro filme, Coutinho simboliza um país que, após longo intervalo de trevas, reatava enfim o fio da História e podia seguir adiante.

Um marco da época de transição foi “Pra Frente, Brasil”, de Roberto Farias, cuja história denunciava a tortura, de modo naturalista e sem disfarces. Produzido em plena ditadura, sofreu todo tipo de pressão. A história é a de um homem (Reginaldo Faria) preso por engano pelos órgãos de repressão e torturado nos porões do regime. “Nunca Fomos Tão Felizes”, de Murilo Salles, conta uma história de relacionamento entre pai e filho tendo por fundo a luta armada de resistência ao regime. A trama é baseada em conto de João Gilberto Noll.

Nesse umbral aberto pela redemocratização, começam a surgir filmes que representam aspirações democráticas tanto dos diretores como do público. Deve ser lembrado Jango, o documentário de grande sucesso de Silvio Tendler, que reconstituía o governo e a conspiração contra João Goulart.

Com a normalização democrática, essa produção se intensifica. A memória da resistência armada ao regime, do exílio e da tortura, ganha muitos títulos, em documentário ou em ficção. Para enumerar, saem filmes como O Que É Isso, Companheiro, Zuzu Angel, Lamarca, Cabra Cega, Ação Entre Amigos, Yara, Batismo de Sangue, 70 e Galeria F. (ambos de Emilia Silveira), entre outros. Recordam figuras da guerrilha (Carlos Lamarca, Carlos Marighella, Iara Iavelberg), ou ações da luta armada, como o sequestro de embaixadores para resgate de prisioneiros políticos (O Que É Isso, Companheiro?, Hércules 56 e 70). Houve cineastas que utilizaram o período como material de ficção, como Ação Entre Amigos, de Beto Brant, ou Cabra Cega, de Toni Venturi. A memória da tortura também não esteve ausente com Que Bom te Ver viva, de Lúcia Murat, Corte Seco, de Renato Tapajós, e Batismo de Sangue, de Helvécio Ratton.

Esse conjunto de filmes, no entanto, ainda deve ser considerado deficitário, dada a importância do período para a História brasileira. Em geral, investe num memorialismo que não toca questões políticas mais delicadas ou tenta entender estruturas que tornaram tais fatos possíveis. Uma exceção é Cidadão Boilesen, de Chaim Litewski, que ilumina a trajetória de um empresário financiador dos aparelhos de repressão em São Paulo, o dinamarquês Henning Albert Boilesen, do Grupo Ultragaz. Tema espinhoso, o da colaboração de parte do empresariado com as masmorras da ditadura, raramente debatido pelo cinema brasileiro. A exceção de Cidadão Boilesen ilustra uma tese do crítico Jean-Claude Bernardet sobre as dificuldades do cinema brasileiro em enfrentar algumas esferas de poder da sociedade brasileira, notadamente a Justiça, o sistema financeiro e a mídia, em especial no relacionamento entre elas e a ditadura. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.