08/01/2020 - 7:18
Luiz Zanin Oricchio
Em 2014, a chinesa Fuyao comprou uma antiga indústria da GM em Ohio, fechada desde a depressão de 2008. A promessa era de recriar centenas de empregos nessa fábrica de vidros de automóveis. Os postos de trabalho de fato reaparecem, com os norte-americanos voltando a seus empregos. E mesclando-se a centenas de chineses que chegam para implantar o sistema de trabalho chinês em terras americanas.
Tema do documentário American Factory, o filme tem uma curiosidade a mais: é a primeira produção do casal Obama, para Netflix. A produtora deles chama-se Higher Ground Productions e os diretores do documentário são Steven Bognar e Julia Reichert. Quem assistir ao longa na Netflix será brindado por um curta-metragem que mostra o diálogo entre os produtores e os cineastas. Bastante interessante. Barack Obama dá uma de crítico e diz que o que o atrai no filme são suas nuances, as sutilezas e complexidades dessa relação laboral entre duas culturas.
Essa integração de fato é delicada e implica um encontro – e, sobretudo, desencontro – de culturas. Os chineses sabem disso. Tanto assim que o CEO chinês – um personagem e tanto, pela sua franqueza – Cao Dewang chega com ares de grande senhor, porém pisa de mansinho no novo terreno. Por exemplo, quando um auxiliar recomenda que ele decore o hall de entrada da fábrica com duas estátuas – uma americana, outra chinesa – para simbolizar a união dos dois países, o esperto chairman recomenda que não: “Ponha só a americana, senão dá ciumeira”.
Mesmo com esses cuidados, a integração mostra-se problemática. Os americanos não entendem muito bem o que os novos patrões desejam. Para remediar a situação, alguns trabalhadores são convidados para uma visita à matriz, na China. As confraternizações são bonitas, com belos discursos e brindes, mas pouco práticas.
Isso porque a questão é o choque cultural. Um novo diretor, nomeado pelo chairman, reúne sua diretoria e tenta uma explicação de fundo comportamental. As crianças americanas são muito mimadas, ele explica. Fazem o que querem e os pais são muito permissivos. Por isso, quando se tornam adultos, não podem ser contrariados. É preciso tato para conversar com eles, pois não admitem críticas. “Tem de fazer como para escovar um burro – sempre a favor do pelo; se for no sentido contrário, há o perigo de levar um coice.”
Para seguir com as metáforas, essas crianças crescidas, esses animais manhosos, têm de ser levados com jeito. Mas com firmeza. Mesmo assim, muitos não se adaptam. Um deles diz que perdeu o emprego por ter levado tempo demais (três ou quatro segundos) para encontrar um arquivo no computador. Seu superior chinês achou tempo demais. E o demitiu.
As metas chinesas são altas: exigem uma produtividade só alcançável em jornadas de trabalho extensas e exaustivas, com um só dia de repouso semanal, férias curtas, etc. Querem que os norte-americanos trabalhem como os chineses. E, claro, há uma palavra a separá-los: “Union”, ou seja, sindicato. E este se torna o centro do filme: a batalha pela sindicalização, que passa por um plebiscito no interior da empresa. A sindicalização é fortemente combatida pela direção, pois prejudicaria a produtividade.
Terminaria, no entender dos novos patrões, por gerar novamente desemprego. O argumento lembra um pouco o papa da nova política econômica brasileira, autor da célebre disjunção “Vocês querem empregos ou direitos?”.
Quer dizer, American Factory, no fundo, é um filme sobre o conflito entre capital e trabalho. Não há como acertar essa contradição, pois os compradores da fábrica exigem produtividade máxima, que não combina com direitos trabalhistas adquiridos.
Premiado no Cinema Eye Honors, American Factory é um documentário observacional, talhado com enorme paciência e emprego do tempo necessário. Ouvimos as vozes dos operários e também as dos patrões e chefes. Instalamo-nos no centro desse conflito de culturas e interesses e passamos a compreender melhor essa dinâmica do capitalismo em que todo arranjo parece precário, desequilibrado e parcial, pois embate de forças assimétricas. A única forma de os operários equilibrarem um pouco a partida é através da representação coletiva de um sindicato. Os patrões sabem disso. American Factory é, no fundo, o relato de uma tragédia laboral contemporânea.
Obama, quando presidente, disse não ter uma varinha mágica para resolver o problema do desemprego no chamado “cinturão da ferrugem” (rust belt), do qual Ohio faz parte. Agora, como produtor de cinema, ajuda a refletir sobre a questão. Trump mira nessa região, com seus eleitores sem salário e ressentidos, para se reeleger este ano.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.