Ferdinand Marcos foi responsabilizado pela Anistia Internacional por mais de 70 mil prisões de opositores, 34 mil torturados e 3.240 mortos, de 1965 até a fuga para o Havaí, em 1986. Com calculados US$ 10 bilhões subtraídos das Filipinas para seu próprio proveito – a partir de determinado momento quem mandava no país era a mulher, Imelda –, o governo da família passou à história como o segundo mais corrupto do século XX, atrás apenas de Sudharto, da Indonésia. Mesmo assim, há quem negue tudo o que foi comprovado, pinte a sangrenta governança Marcos como “era de ouro” e garanta a volta do clã ao poder, valendo-se de antigas alianças políticas, muito dinheiro e eficiente campanha por redes sociais calcada em desinformação e dirigida a jovens que não viveram o terror. O beneficiado é o filho do ditador: Ferdinand Marcos Jr., ou Bongbong Marcos, conhecido também como BBM, que será o novo líder de 110 milhões de filipinos após eleições na segunda-feira, 9. O resultado oficial não saiu, mas ele já foi anunciado vencedor.

CLÃ MARCOS Ferdinand Marcos, a mulher Imelda e o filho Bongbong, que agora retoma a dinastia política nas Filipinas (Crédito:Romeo Gacad)

Com isso, a família Marcos volta ao poder depois de 36 anos, em aliança com o presidente Rodrigo Duterte. O atual mandatário foi eleito com a promessa cumprida de “matar todos eles” – no caso, traficantes de drogas (ou não), assassinados às dezenas a tiros pelas ruas, noite a noite. Nos autos da própria polícia constam 8 mil executados, mas ativistas asseguram que o número é bem maior. O Tribunal Penal Internacional encontrou “evidências preliminares de crimes contra a humanidade” no país em 2020. Foi justamente em Duterte que Bongbong buscou apoio – e encontrou, em troca da promessa de proteção diante do TPI de Haia. Sua vice, aliás, é filha de Duterte: Sara.

A campanha de Bongbong, que o retratou como “unificador”, foi calcada em mentiras. Entre elas, a alegada inocência do pai, que em 1986 fugiu com apoio do presidente Ronald Reagan via Guam, uma ilha de possessão americana no meio do Pacífico (a família e 90 membros da “entourage” se fixaram no Havaí). BBM tinha 29 anos. Agora, aos 64, ele evitou debates e entrevistas, e se valeu de uma sofisticada operação de mídias sociais. A rede de blogueiros e influenciadores digitais refutou acusações de “desinformação”, mas se valeu de boatos, inclusive citando “a enorme quantidade de ouro que Bongbong distribuirá à população”. O novo presidente deixou o posto no Senado, mas sua irmã, Imee, segue por lá; e seu filho caçula, Ferdinand Alexander, também deve garantir uma vaga no Congresso.

O pleito foi cercado de controvérsias. No próprio dia da votação, o governo adiantou que mais de 1.800 urnas eletrônicas “não estavam funcionando direito”, enquanto eleitores asseguravam que seus nomes não estavam nas listas. Extra-oficialmente, BBM obteve 29,9 milhões de votos, superando os 27,5 milhões necessários para garantir maioria, mas não foi divulgada a data em que serão apresentados os números oficiais. Ele teria obtido o dobro de votos de Leni Robredo, que era a vice-presidente de Duterte.

Depois de garantir o poder por décadas com um regime corrupto cercado de acusações de fraude eleitoral e assassinatos políticos, o clã Marcos foi responsável pela quebra do país, que teve o Congresso fechado pelo ex-presidente e esteve sob lei marcial de 1972 a 1981. Ferdinand e Imelda ainda são idolatrados por muitos (ele morreu em 1989 e ela ainda está viva, com 92 anos). Apesar de serem ícones sanguinários, não representam o único caso de dinastias que conseguiram se perpetuar.

A história mundial registra clãs familiares que se recusam a deixar o poder, como Daniel Ortega, que de revolucionário sandinista passou a presidente eternizado na Nicarágua, sob seu comando por quatro mandatos (1979-1990, com reeleições em 2011, 2016 e 2021). Ou Keiko Fujimori, filha de Alberto Fujimori, presidente do Peru condenado a 25 anos de cadeia. Também acusada de corrupção e apesar de brigada com o irmão Kenji, a extremista de direita já se candidatou por três vezes à presidência da República (2011, 2016 e 2021) e por pouquíssima margem não ganhou no segundo turno das duas últimas.

Pesquisa publicada no jornal Historical Social Research mostra que 119 líderes mundiais (ou 12%) de 1.029 presidentes e primeiros-ministros da África sub-saariana, Ásia, Europa e Américas do Norte e Latina, entre 2000 e 2017, são herdeiros políticos de suas famílias. As autoras, Farida Jalalzai e Meg Rincker citam dinastias como os Bush, dos EUA, os Trudeau, do Canadá, e os Kirchner, da Argentina.

Extravagância e poder

765 PARES A cidade de Marikina, “Capital do Sapato das Filipinas”, tem um museu com o que sobrou da coleção de Imelda (Crédito:Bullit Marquez)
Bullit Marquez
Divulgação

Imelda Marcos, primeira-dama das Filipinas entre 1965 e 1986, deixou para trás 5 mil pares de sapatos quando fugiu para o Havaí, além de centenas de vestidos e perfumes. Mas foi a coleção de calçados da “borboleta de ferro” que assombrou o mundo. E não era nada, perto do que se descobriu depois.

Miss aos 25 anos, casou-se com o deputado de 37 em 11 dias, depois de ganhar um anel de noivado de 300 mil libras esterlinas. Na fuga, 32 anos depois, foi contabilizado o que a família arrastou: caixas com US$ 717 milhões em espécie, 65 relógios de luxo, US$ 4 milhões em pedras preciosas acondicionadas em fraldas, 300 caixas de jóias, um caixote de três metros de comprimento cheio de pérolas, uma estátua de ouro de quase um metro de altura e recoberta de diamantes, US$ 200 mil em barras de ouro, US$ 1 milhão em pesos filipinos, recibos de bancos dos EUA, Suíça e Ilhas Cayman somando US$ 126 milhões. No dinheiro da época, perto de R$ 4,4 bilhões. Em 2011, ainda foi descoberta parte do acervo de 175 obras de arte, em um depósito de Nova York.