DIÁLOGO João Doria em evento com evangélicos (Crédito:Divulgação)

As eleições de 2018 foram marcadas pela polarização e pela antipolítica. Mas outro fator marcou a dinâmica eleitoral de forma decisiva. Como poucas vezes, a religião teve um papel importante. As pautas conservadoras nos costumes ganharam uma dimensão inédita. A rejeição ao PT no último pleito, afundado em denúncias de corrupção, também ajudou a tirar do foco o partido que sempre foi mais agressivo na defesa de temas progressistas. Bolsonaro se beneficiou disso e da ascensão do voto evangélico, que foi um dos pilares da sua eleição.

OFENSIVA Lula busca se reconectar aos envangélicos (Crédito:Divulgação)

Tudo isso mudou. A rejeição a Bolsonaro chegou aos fiéis, e a perda evidente de apoio entre os evangélicos virou um dos principais problemas para sua reeleição. Por isso, ele corre para reconquistar o grupo. Convidou 100 pastores para um encontro no próximo dia 8 e tem buscado retomar alianças. Eduardo Bolsonaro e o deputado Hélio Lopes, um dos mais fiéis escudeiros do mandatário, passaram a integrar a Frente Parlamentar Evangélica no Congresso, como secretário e tesoureiro, respectivamente. A ideia é controlar a chamada bancada da Bíblia, o grupo religioso mais influente do Legislativo, com 115 deputados e 14 senadores. Mas todo esse esforço pode ser em vão.

CONSERVADOR Sergio Moro e evangélicos em dezembro passado (Crédito:Divulgação)

Os evangélicos se afastaram de Bolsonaro principalmente pela sua desastrada campanha contra a vacinação na pandemia. Mas não é só isso. A alta rejeição do presidente, na faixa de 60%, também faz os líderes religiosos questionarem os riscos de se manterem ligados a uma candidatura que parece afundar, mesmo que o presidente tenha se esforçado para atrair esse segmento. Defendeu pautas conservadoras, como a rejeição ao aborto e à união homoafetiva, e indicou um nome “terrivelmente evangélico” para o STF. Dois de seus principais ministros são pastores evangélicos: Milton Ribeiro (Educação) e Damares Alves (ministra da Mulher e da Família e dos Direitos Humanos). Mas isso não impediu o afastamento desse segmento.

Os aliados evitam reconhecer esse distanciamento. Para o líder da Frente Parlamentar Evangélica, deputado Sóstenes Cavalcante (União Brasil), o presidente conta com 80% dos parlamentares evangélicos. O que falta, diz o líder, é saber se o presidente tem interesse de continuar tendo o apoio da Frente. “Posso afirmar que o presidente até então tem ampla maioria. Ouço que o segmento evangélico está dividido entre Lula e Bolsonaro. Ando o Brasil inteiro e onde eu vou sinto que cerca de 70% do eleitorado é pró-Bolsonaro. Se isso não se reflete nas pesquisas, só os institutos podem explicar. Desafio eles a irem a qualquer culto no País. A hegemonia do Bolsonaro entre os evangélicos é enorme.” Essa confiança não é sentida no próprio Congresso. Há outros fatores de desgaste. Na mesma semana em que o governo tentava se reconectar com as lideranças evangélicas, aliados do governo aprovavam à sorrelfa a volta dos cassinos ao Brasil. Esse é um dos temas que os evangélicos mais rejeitam, e o papel dúbio do presidente (que ameaça vetar uma eventual aprovação, enquanto Flávio Bolsonaro participa de lobby pelo retorno da jogatina) não passa despercebido. “Ficou provado que o governo está minado ideologicamente. Lamentável que no dia em que se inicia uma guerra, a maioria apertada da Câmara aprova um retrocesso como a legalização de jogos de azar. Dia triste!”, afirmou Cavalcante na quinta-feira.

Um importante segmento dos evangélicos está desembarcando do governo: a Igreja Universal do Reino de Deus. O líder da bancada evangélica no Congresso minimiza esse risco. Afirmou que, de acordo com o último Censo, a igreja do bispo Edir Macedo tem apenas 1,8 milhão de fiéis, sendo que no passado esse número já ultrapassou 2 milhões. “Nós, evangélicos, somamos mais de 60 milhões de fiéis. A Universal não representa a maioria. Eles são apenas algo em torno de 3%. A maioria fica com a Assembleia de Deus, que tem cerca de 60%. Mas o afastamento da Universal fica evidente pelo estremecimento do Republicanos, partido ao qual é ligada, com o governo. O Republicanos se sentiu preterido quando o Centrão aderiu ao governo. Não conquistou cargos e nem a adesão de novos parlamentares, que estão migrando para o PL (novo partido do presidente) e o PP. Além disso, a Universal está estremecida com Bolsonaro desde que enfrentou processos em Angola e não recebeu o apoio que esperava. Nem a indicação fracassada do bispo Crivella para embaixador na África do Sul salvou a relação. O presidente do Republicanos, Marcos Pereira, está em pé de guerra com o governo. Nos bastidores, é dada como certa a liberação dos parlamentares do partido para fazerem campanha aos adversários de Bolsonaro. “Só acredito quando o Republicanos entregar os cargos”, desdenha Cavalcante.

BANCADA DA BÍBLIA Eduardo Bolsonaro (ao fundo) entrou na Frente Parlamentar Evangélica para conter defecções (Crédito:Divulgação)

A perda de sustentação é vista como uma oportunidade pelo PT, que sonha em atrair o voto evangélico. Em 2018, estima-se que 70% dos evangélicos votaram em Bolsonaro. O PT nunca conseguiu essa proporção. Agora, Bolsonaro tem 40% das intenções de voto entre os evangélicos, e Lula, 30%, segundo pesquisa da Confederação Nacional do Transporte (CNT) em parceria com o Instituto MDA. Entre os católicos, a preferência se inverte: Lula tem 47% das intenções de voto e Bolsonaro, 25%.

Os evangélicos estão na mira porque devem se tornar o maior grupo religioso do País. Segundo o último censo do IBGE, feito há mais de dez anos, 64,6% dos brasileiros eram católicos. Os evangélicos eram 22,2%. Uma extrapolação desses números para o presente mostra uma grande mudança. Em 2020, o número de católicos teria caído para 44,9% e o número de evangélicos, subido para 31,8%. É o que confirma um levantamento do Datafolha de 2020: o instituto apontou que 50% dos brasileiros são católicos e 31%, evangélicos. Em 2030, o número de evangélicos deve se igualar ao de católicos.

Para se aproximar dos evangélicos, Lula, que está na dianteira das pesquisas eleitorais, conta com o apoio do pastor Paulo Marcelo Schallenberger, uma aproximação que foi intermediada pelo presidente do sindicato dos metalúrgicos do ABC, Moisés Selerges Júnior. Próximo a um notório bolsonarista, o pastor Marco Feliciano, Schallenberger esboçou até um manual para o PT se aproximar desse segmento: entre as propostas, reforçar os ganhos que as igrejas tiveram nos anos petistas. O objetivo é evitar que a campanha caia em armadilhas ao defender temas que confrontem os evangélicos, como o aborto. Também há o cuidado de evitar que esse segmento migre para um candidato da terceira via. “Já cadastramos 260 pastores por todo o Brasil em um primeiro momento de aproximação por meio digital. A partir de março, começo a viajar para ampliar esse contato. O evangélico tem que lembrar que no governo Lula não houve ataque à família brasileira”, diz o pastor.

“Bolsonaro conta com 80% dos parlamentares evangélicos. São sua base de sustentação no governo. Falta saber se ele tem interesse em continuar tendo esse apoio” Sóstenes Cavalcante, líder da Frente Parlamentar Evangélica (Crédito:Divulgação)

Lula chegou a divulgar que desejava um vice evangélico para sua chapa. Desde o ano passado tem se esforçado para mostrar apoio dos religiosos. Teve um encontro com Manoel Ferreira, bispo-primaz da Assembleia de Deus Madureira, com registros que rapidamente foram distribuídos na rede e irritaram os bolsonaristas. Os evangélicos chegaram a se unir a ele no passado. Na eleição de 2002, Lula contou com o apoio de Silas Malafaia, mas hoje o líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo virou um dos escudeiros mais estridentes de Bolsonaro. Malafaia tem dito que Lula e Sergio Moro “vão quebrar a cara com os evangélicos”.

Apesar de os governos petistas terem recebido grande adesão dos evangélicos, a relação com o partido ainda é tumultuada. Líder da Igreja Mundial do Poder de Deus, o apóstolo Valdemiro Santiago foi alvo de críticas de Lula no ano passado por ter ofertado num culto sementes de feijão por até R$ 1 mil. “O papel das igrejas é ajudar para orientar as pessoas, não é vender grão de feijão ou fazer culto cheio de gente sem máscara, dizendo que tem o remédio pra sarar”, disse o petista, queimando mais uma ponte com os evangélicos. Valdemiro respondeu dizendo que Lula poderia voltar para a cadeia. Dilma se desgastou com os evangélicos em seu mandato, mas evitou afrontá-los ao não apresentar pautas progressistas como a criminalização da homofobia. Lula conta agora com Geraldo Alckmin para restabelecer a relação com os religiosos. O ex-tucano é ligado ao catolicismo conservador e tem conexões com os evangélicos, cultivadas quando foi governador de São Paulo.

“Os evangélicos estão mais ativos do que nunca nesta campanha. São pragmáticos e negociam com todos os candidatos” Paulo Baía, sociólogo e cientista político da UFRJ

“A bancada evangélica não é monolítica. Os evangélicos têm uma estratégia em cada estado. O que eles querem é uma proximidade com quem está no governo. Apostam em quem tem mais chance de vencer e se distribuem proporcionalmente a isso. Foi assim em praticamente todos os governos recentes”, diz Paulo Baía, cientista político da UFRJ. Para ele isso deve mudar, sobretudo se Lula consolidar sua posição até agosto. Segundo ele, os evangélicos são pragmáticos e negociam com todos os candidatos, mesmo aqueles que não têm chance de ganhar. “Eles estão mais ativos do que nunca nesta campanha e depois vão formar um bloco para agir no governo de quem tomar posse.”

Candidato do PSDB, o governador João Doria é católico praticante, mas com temperamento ecumênico. É interlocutor frequente de dom Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo, e do padre Júlio Lancelloti, conhecido pela defesa dos sem-teto na capital paulista. É próximo da comunidade judaica e fala bastante com líderes de várias denominações, como o médium Divaldo Pereira Franco, um dos maiores divulgadores da doutrina espírita. Assim como Lula, Doria também mantém contatos com a Assembleia de Deus, maior denominação pentecostal do Brasil. Uma das cotadas a vice na sua chapa é evangélica: Eliziane Gama, senadora do Cidadania, partido que acaba de se federar com o PSDB.

PASTOR LULISTA Paulo Marcelo Schallenberger (esq.) fez um manual para o PT evitar armadilhas na campanha (Crédito:Divulgação)

Já o ex-juiz Sergio Moro está de olho no voto conservador, mesmo público de Bolsonaro, e por isso também mira os evangélicos. Logo que lançou sua candidatura, reuniu-se com líderes evangélicos em São Paulo. Conta para essa aproximação com Uziel Santana, ex-presidente da Associação Nacional dos Juristas Evangélicos, que se integrou à sua campanha. “O segmento evangélico tem sido valorizado nestas eleições. Moro foi o primeiro a criar um núcleo específico para esse segmento. Os demais estão tentando copiá-lo”, diz Santana. Ele alega que até a invasão da Ucrânia afasta os religiosos do presidente. “Como apoiar alguém que vai para a Rússia demonstrar solidariedade a Putin? A igreja evangélica na Ucrânia está sofrendo, e nosso presidente vai lá flertar com o autoristarismo.”

ISENÇÃO Dom Odilo Scherer é interlocutor frequente de João Doria. CNBB diz que não apoiará candidatos (Crédito:GABRIEL BOUYS)

Ciro Gomes tem utilizado um approach mais “didático” ao tema da religião em uma campanha turbinada pelo marqueteiro João Santana. Entre as peças que preparou para falar sobre o assunto, reforça que o Estado é laico, mas que o País se formou no “berço do cristianismo”. Aponta que a mensagem cristã é baseada nas noções de “superação” (um aceno aos evangélicos) e “solidariedade” (aos católicos), tentando atrelar valores espirituais à ideia da reconstrução do País. Uma grande oportunidade de se aproximar do voto evangélico foi perdida com a recusa de Marina Silva (Rede) de aceitar ser vice na sua candidatura. Ela é uma evangélica atuante, mas não quis participar de uma campanha dirigida pelo ex-marqueteiro petista, que acusa de ter mentido sobre ela na campanha de 2014.

EM GUERRA Bispo licenciado da Universal e presidente do Republicanos, o deputado Marcos Pereira critica o presidente (Crédito:Adriano Machad)

A Igreja católica, que desde os anos 1970 tem um papel fundamental na política do País, continua a se mostrar afastada do apoio explícito a candidatos, uma determinação em curso desde o papado de João Paulo II. Este ano, a CNBB informou que a instituição resolveu divulgar um protocolo que deverá ser seguido por todos os candidatos que desejarem ser recebidos por seus membros, mas diz que ainda não foi procurada por nenhum candidato. Quanto ao apoio para um ou outro nome à Presidência, a entidade informou que ela não se posicionará nesse sentido.

ESCUDEIRO Silas Malafaia apoiou Lula em 2002. Agora, é fiel apoiador de Bolsonaro e diz que o petista e Moro perderão (Crédito:Eduardo Knapp)

Outros grupos também mostram que vão se manter independentes. Para atrair os evangélicos, mas também o voto judaico, Bolsonaro chegou a declarar no início do mandato que mudaria a embaixada brasileira para Jerusalém (antiga reivindicação de Israel). Cláudio Lottenberg, presidente da Confederação Israelita do Brasil, diz que a comunidade judaica é tão plural e diversa como o País. “Há judeus de esquerda, de direita, de centro.

PELA TOLERÂNCIA O babalaô Ivanir dos Santos diz que as religiões afro precisam defender a democracia (Crédito: Chico Ferreira)

Defendemos a democracia, a tolerância e a busca do entendimento para superar os desafios do País.” Outras comunidades também preferem a isenção. “Vamos apoiar a melhor proposta capaz de defender a democracia, a liberdade e o Estado laico, com diversidade e combate ao racismo e à intolerância religiosa”, afirma o babalaô Ivanir dos Santos, professor de História Comparada da UFRJ que é interlocutor de várias religiões afro. Num ambiente ainda polarizado e alimentado pelo discurso de ódio nas redes sociais, resta saber se a pregação pela tolerância vai prevalecer para conquistar os corações dos fiéis.