ESPOSA Ruth, falecida em 2008: FHC entrou em segundo lugar na faculdade; ela, em primeiro (Crédito:Marcos Mendes)

Em trezentas páginas que pendulam entre o texto do político e historiador Joaquim Nabuco e o estilo do escritor Machado de Assis, Fernando Henrique Cardoso acaba de lançar aquele que, vaticina ele, é seu derradeiro livro. Intitulado “Um intelectual na política: memórias” (e aí já se vê a mão de Nabuco em “Um estadista do Império”), cabe perguntar se de fato essa é a última produção de FHC, feita às vésperas de completar 90 anos. A resposta é: provavelmente sim, menos pela idade, muito mais porque no livro atual o ex-presidente se revela um autor definitivo, diverso em essência daquele que fora até o momento. Não há reservas, não há fronteiras, não há tom cerimonioso. Se em “Diários da Presidência” (quatro densos volumes em que narra bastidores de seus dois mandatos) transparece um homem por vezes amargurado e que compensava, aos finais de semana, com releituras do poeta Blaise Cendrars, o tédio causado pelos políticos que só lhe pediam favores, em “Um intelectual na política” vê-se um FHC emocionalmente livre, que pela primeira vez mescla a sua trajetória acadêmica (até mea culpa tem em alguns momentos) com a jornada política e a vida pessoal. É como se ele tivesse se sentado ao computador e deixado as lembranças lhe ditarem as palavras que digitou. E isso é fato: nenhum arquivo, além do arquivo de seu cérebro — “eu sempre tive excelente memória” — foi consultado.

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Não é sem motivo que o livro nos apresenta, já no início, a graciosa figura de sua babá, nos tempos de infância e adolescência, na mais descontraída medida machadiana: Alzira, a “Zizi”, filha de uma ex-escrava de seu bisavô materno. O sociólogo e cientista político FHC relata que ela viveu por muito tempo na família, como agregada: “De pequeno, e mesmo já grandote, eu não calçava meias nem sapatos: esticava as pernas e ela os punha. Se perdi esses hábitos, eu devo isso à minha mãe e, mais tarde, à minha primeira mulher, Ruth. Se hoje não guardo esses costumes senhoriais, foi pela boa educação que delas recebi”. Essa é uma das referências à antropóloga e primeira esposa, Ruth Cardoso (faleceu em 2008). Em “Diários da Presidência”, Ruth é sombra. No livro atual, surge em sua grandeza. Ela o deixou em segundo lugar no ingresso na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP (ou seja, classificou-se em primeiro). Socorria e salvava o péssimo desempenho, em estatística, de seu futuro marido.

“De pequeno, e mesmo já grandote, eu não calçava meias nem sapatos: esticava as pernas e ela [babá Alzira] os punha. Se perdi esses hábitos, eu devo isso à minha mãe e, mais tarde, à minha primeira mulher, Ruth. Se hoje não guardo esses costumes senhoriais, foi pela boa educação que delas recebi.”

FHC é um estudioso do estrutural racismo brasileiro, e, agora, com a simplicidade daqueles que não devem nada a ninguém, fala de seus ancestrais escravocratas, assim como da presença de militares em sua família: é sobrinho-neto de generais, é neto de marechal, é filho de general. Deixa claro que sempre foi contrário ao marxismo por considerá-lo incompleto para explicar a desigualdade social brasileira, admirou desde cedo a metodologia do sociólogo Max Weber e do filósofo Antonio Gramsci, mas mesmo assim viu-se perseguido, aposentado compulsoriamente como professor universitário e exilado pela ditadura militar. Com serenidade, afirma que os parentes militares, mortos e vivos, tiveram influência para que não fosse torturado. “FHC não é um teórico, é um prático”, dizia a ditadura. Balela! Besteira! Nem a favor de João Goulart o jovem FHC era. E vale a pena lembrar que o capitão Jair Bolsonaro, que não serviria nem para ser a “Zizi” de FHC, costuma afirmar que gostaria de tê-lo fuzilado.

INSPIRAÇÃO O livro de FHC pendula entre o texto de Joaquim Nabuco e o estilo de Machado de Assis: raciocínio analítico e a memória como arquivo

Na trajetória acadêmica, FHC rende muitas homenagens ao sociólogo Florestan Fernandes e faz uma espécie de mea culpa sobre o seu endosso à “teoria da dependência” — na qual indicava, em 1969, o socialismo como solução para a expansão da industrialização no Brasil. FHC renega, também, que algum dia tenha sido neoliberal, e combate convictamente a desigualdade social mas dentro do conservadorismo, capaz de promover reformas a partir da democracia. “Um intelectual na política” não deixa de defender a formação de um bloco de centro para evitar extremismos nas eleições de 2022, na linha proposta por Gramsci e não seguida na Itália dos anos 1930 para barrar a ascensão do fascismo. Apesar disso, escreve ele: “Enganam-se os que pensam que ‘o fascismo’ venceu no Brasil. Enganam-se tanto quanto os que vêm o ‘comunismo’ por todos os lados (…)”.

Mais que o Plano Real, que dera estabilidade econômica ao País, ele considera a participação no processo de redemocratização o mais glorioso ato de sua vida política. Falando-se em Plano Real, em 1994, como ministro da Fazenda de Itamar Franco, FHC reuniu-se em Washington com Larry Summers, secretário do Tesouro na gestão Bill Clinton. O secretário lhe perguntou quem seria o candidato à sucessão de Itamar. FHC respondeu: Eu!. Criou, assim, um fato irreversível, embora nada estivesse pacificado no Brasil nesse sentido. É natural que o leitor queira saber, bem mais, sobre o dia a dia do ex-presidente — a curiosidade pessoal ganha de longe da curiosidade por eventos políticos. Pois bem, FHC repete um dos personagens geniais do Bruxo de Cosme Velho. O ex-presidente dorme, acorda, toma café da manhã, lê jornais, vai ao computador, almoça, tira uma soneca. Faz isso alegre, sem casmurrice, mas cabe dizer que lembra a rotina simples e pacata do Dom Casmurro machadiano: “como bem, não durmo mal”. Só mesmo alguém como FHC, dono de um conhecimento que se expande e se reflete sobre si próprio, é capaz de nos deixar uma obra inteligente como “Um intelectual na política”.