Na quinta-feira 9 chegou aos cinemas o primeiro trabalho da atriz Christiane Torloni, 62 anos, como diretora. O documentário “Amazônia — o despertar da Florestania”, feito em parceria com o diretor Miguel Przewodowski, é resultado de sua história de amor com a floresta, um namoro que começou a ficar sério em 2007, durante as gravações da série “Amazônia — de Galvez a Chico Mendes”. Foi aí que ela se deparou com uma densa fumaça vinda das queimadas da mata. “Eu tive um chamamento no meu coração, igual à época em que tinha 20 e poucos anos e fui envolvida pelas Diretas Já”, diz a atriz. Em 2009, com Juca de Oliveira e Victor Fasano, Christiane organizou um manifesto pelo desmatamento zero chamado “Amazônia para Sempre”, com dez medidas para preservar a floresta e um milhão de assinaturas. O documentário é uma resposta aos signatários do abaixo-assinado. Apesar da emoção, é um retrato da lucidez da artista diante dos atuais desafios políticos e ambientais, temas que analisa em entrevista à ISTOÉ.

A senhora usa a expressão florestania. O que ela significa?

É próximo ao que chamamos de ecologia. É um “fazimento” indígena, rituais de cura da terra feitos com as ferramentas que os índios têm e baseados em um conhecimento ancestral. O índio não precisa vir para a civilização e se tornar alguma coisa que ele não é, porque ele já é um cidadão da floresta, sabe fazer manejo, o quanto pode pescar, onde deve plantar, como proteger todo o ecossistema que está à sua volta e atender aos deveres e direitos que a floresta pede. Se não for assim, ela não fica em pé. Enquanto tem índio em pé, tem floresta em pé. Talvez o que falta para nós, “homens brancos”, é uma etiqueta explicativa. A palavra lembra cidadania, que é um conjunto de normas de bem viver que de alguma maneira têm de ser impostas.

Qual o critério para a abrangente escolha de personagens?

Tenho muito medo dos maniqueísmos e escolhi pessoas que fizeram algo importante para a Amazônia. Não podemos reescrever a história. Quando fizemos o abaixo-assinado, não foi só preencher uma folha, passamos um ano viajando e ouvindo ONGs, instituições, pensadores. Ao falar comigo, essa pessoa está falando com todos nós.

Como foi a sua experiência trabalhando como diretora?

O cinema é muito fragmentado. Você tem uma ideia, mas para ela se tornar uma obra depende não só de execução, mas também de convencimento. Cada um quer fazer o seu filme, mas ele não é um conjunto de olhares, ele é a síntese de um olhar de alguém que disse “esse é o filme que eu quero fazer”. Entre os filmes possíveis, eu motivei as pessoas a fazerem o filme que eu sonhei. Entre isso e montar o filme todo, aí sim foi um encontro de discussões. Aparecem humanistas, economistas, jornalistas, antropólogos. O filme começa com a voz de Antonio Abujamra porque quero mostrar que ele vai ser visto através dos olhos de um artista. Se tiver que atirar um tomate, que seja no artista. Meus pais são da turma inaugural da primeira escola de arte no Brasil, eu nasci nesse meio.

O brasileiro em geral é desconectado com as raízes e as riquezas do País?

É, e porque a educação é pífia. Só por isso. Se a nossa educação fosse boa, estudaríamos Darcy Ribeiro no colégio desde pequenos, com edição ilustrada para crianças. Podemos jogar uns trinta livros no lixo e deixar esse lá. Darcy é cada vez mais contemporâneo, mas vivemos em um País que o exilou e matou-o em vida. Encontro esse espírito “darcyniano” em 60% das pessoas com as quais eu converso, mas elas se sentem um pouco sonhadoras, maluquetes, quando na verdade essa essência é magnífica. Precisamos que isso ecoe nas nossas crianças, porque assim vamos voltar a amar o Brasil, ou a redescobrir o Brasil. Ou a votar melhor nas eleições no Brasil.

Por que não se posicionou politicamente nas últimas eleições e também no documentário?

Interessa-me a casa comum. É o que me interessava nos anos 1980. Não mudei de lá para cá, apenas saí de uma questão político-partidária porque ela infelizmente diminuiu. A Amazônia é maior que um partido. Não tem nada mais importante para a gente que a nossa casa, o nosso ninho, ele que agasalha. Só que a Amazônia é o ninho comum, como disse o papa Francisco. Por que o papa está no filme? Porque esse cara teve a grande “sacação” do século XXI. Ele escreveu uma encíclica na qual convida as pessoas para a conversão ecológica. Fui ler a “Laudato Si” e pensei: esse cara está fazendo o mesmo filme que eu.

O Sínodo da Amazônia foi criticado pelo governo. Como vê essa questão?

O trabalho das Igrejas é grande e não pertence a um segmento só. Precisamos ter luz, é muito difícil seguir o caminho sozinho. A fé é maior que um partido político, Jesus não pertence ao PT e a nenhuma agremiação. O importante na palavra dele é o amor. O trabalho das Igrejas na Amazônia é importante, como também é o da Força Nacional, que chega a lugares onde ninguém consegue chegar. Vi na Amazônia distribuição de enxoval pelas Forças Armadas. Nós pagamos impostos altíssimos para que todos os segmentos da sociedade possam funcionar e acho bom quando vejo lá longe um serviço que o meu dinheiro ajuda a pagar.

Como vê a preservação da floresta Amazônica nos dias de hoje?

O que falta para a Amazônia é uma política de Estado, não de governo. O último estadista que vimos no Brasil foi Fernando Henrique Cardoso. Nem tudo que ele fez foi bom ou ruim, mas se não fosse por sua iniciativa firme, hoje a Amazônia estaria mais desprotegida. E agora essa questão está sendo discutida de novo, para o mal de todos os nossos pecados ecológicos.

O filme mostra que o regime militar contribuiu para o desmatamento. É uma preocupação atual?

Tenho certeza que não estamos em 1964. Estamos em outra conjuntura política, inclusive mundial. Tivemos avanços nos últimos trinta anos, principalmente porque voltamos à democracia. Mas quem mata, desmata. Há um desenvolvimentismo louco, sem nenhum tipo de escrúpulo, como foi com a usina de Belo Monte. Não há estudo real de impacto ambiental, vamos simplesmente fazendo.

O que quer dizer com a frase no documentário: “a democracia está sendo golpeada pela democracia”?

A ação silenciosa e sinistra da corrupção no Brasil desestabiliza a instituição democrática como um todo. É como um câncer silencioso criando metástase em órgãos vitais do nosso sistema democrático. Nesse momento é importante que estejamos em uma grande campanha para não permitir o desmonte de iniciativas como a Lava Jato, a lei da Ficha Limpa, o trabalho da Transparência Internacional. Quando viajamos para a Amazônia, estávamos em um ambiente ligado ao Exército, à Marinha, à Aeronáutica, em uma época em que o general Augusto Heleno era a cabeça do Exército lá. As frases eram no sentido contrário, de que o Exército não tinha interesse em voltar a ocupar esse lugar. Muito bem, dez anos depois, qual é o lugar que o exército está ocupando agora?

E a soberania nacional?

Eu acho que a Força Nacional deve ocupar o lugar dela, de guardiã do Estado democrático. A soberania do País nos afeta como? Ela é ameaçada pelo tráfico de drogas. Na Amazônia é a Força Nacional que tem poder de evitar que um barco passe de um lugar para o outro. As instituições devem fazer aquilo que elas devem fazer. É claro que está todo mundo assustado com o que está acontecendo agora, principalmente porque as pessoas indicadas para ocupar cargos importantíssimos no governo não têm formação para estarem ali.

Pode dar um exemplo?

Nesses cem primeiros dias, vemos escolhas instáveis, quando a própria sociedade civil fez indicações, principalmente para o Ministério da Educação e para o Meio Ambiente. São postos importantíssimos e as pessoas não têm noção do que estão falando. No século XXI, dizer que temos mais ou menos aquecimento global? Uma coisa é dar uma declaração num bar, outra na liturgia do seu cargo. Não importa se é general, almirante, marechal, desde que se tenha qualificação. Qual é o critério de escolha daquelas pessoas para aqueles postos?

Como analisa as críticas aos artistas que se posicionam politicamente nas redes sociais?

Estranha democracia essa. O meu mantra é: só o trabalho responde. Quando fico muito angustiada, quando entro no palco, repito o mantra para mim. Entrei nas redes sociais para divulgar o filme, não para outras coisas. Não tenho vontade e sou muito ocupada para isso. Mas se tiver de escolher um lugar, não estou do lado dos haters, estou do lado dos lovers.

Como vê a luta atual dos movimentos feministas?

Volto a dizer, não estamos nos anos 1960. Hoje a luta possui outras armas e ferramentas. O que me assusta é o índice de assassinatos que estamos vivendo principalmente nas grandes cidades. O feminicídio é como a palavra florestania, eu não me lembro de tê-la ouvido no passado e agora ouço toda hora. Por que estão matando tanto a mulher? Talvez seja toda essa questão de desemprego e desespero social, e uma perda cultural de espaço masculino, porque culturalmente eles tinham certeza de que aquele espaço jamais seria ocupado. Quando começa a mudar, algo fica ameaçado. Os homens são ótimos educadores, sei porque fui casada quatro vezes. Eles precisariam ter uma assistência psíquica para enfrentar esses novos tempos. Sua masculinidade não está sendo discutida, pelo contrário, esses novos papéis deveriam potenciar a virilidade.

A senhora tem um neto de um ano e oito meses. Como é a Christiane Torloni avó?

Estamos vivendo uma época parecida com a das “Diretas Já”, passo muito tempo fora. Me lembro que com meus filhos era uma dor miserável, isso não vi, isso não vi. Lamentavelmente estou perdendo um tempo muito bonito do meu neto. Com esse “fazimento” inteiro, não consigo ficar muito tempo com ele, mas são as missões das pessoas. Pelo menos ele vai ter certeza, como meu filho tem, de que eu estava fazendo uma coisa pelos filhos do Brasil, pelos netos do Brasil. De algum jeito ele está dando um pedaço dele também. Não deixa de ser uma contribuição.