O amor pelo xadrez surgiu aos 6 anos na vida da estudante Malu Fazenda, de 22. “Ganhei uma boneca e, quando fui trocar, escolhi um tabuleiro”, conta ela, que teve ensinamentos do pai. Malu acabou jogando em campeonatos escolares, mas deixou o jogo como hobby. Ao assistir a O Gambito da Rainha, série da Netflix que tem o xadrez como temática principal, tudo mudou. “A série me fez questionar a possibilidade de voltar a jogar mais”, diz ela, que está revendo os episódios. “Antes estava vendo a série como um todo, agora estou conseguindo dar mais atenção ao jogo.”

Assim como Malu, pessoas de todo o mundo passaram a se interessar pelo xadrez após assistir à série, que entrou na plataforma em 23 de outubro. Na semana de estreia, as buscas por “jogos de xadrez” no Google cresceram 41% – e continuaram crescendo a ponto de atingir seu nível mais alto dos últimos sete anos, em novembro. Já o site de compras americano eBay registrou um aumento de 273% na procura por tabuleiros. Os jogadores online investiram no aplicativo Chess – Play & Learn (Xadrez – Aprenda e Jogue), que subiu 847 posições no ranking mundial, com mais de 400 mil downloads feitos em menos de 30 dias.

A série, baseada no romance homônimo de Walter Tevis, conta a história de Beth Harmon, talentosa competidora que lida com vícios e traumas da vida entre suas partidas. A trama se passa no final dos anos 1950, no Kentucky, e apesar de ter inspirações na vida real e em enxadristas famosos, sua história é uma ficção.

Escrita e dirigida por Scott Frank (duas vezes indicado para o Oscar), O Gambito da Rainha teve consultoria de Garry Kasparov (ex-campeão mundial de xadrez) e Bruce Pandolfini (professor e treinador de enxadrismo norte-americano) para garantir a veracidade. Os atores aprenderam o jogo e as partidas foram baseadas em competições reais, com adaptações para a série.

A estudante paranaense Thaynara Machado, de 15 anos, decidiu investir no jogo depois de terminar os sete episódios. “Antes da série, eu via o xadrez como uma coisa chata, agora acho que pode ser muito mais do que isso”, conta ela, que comprou um tabuleiro e até incentivou o irmão, Alex, de 23 anos, a assistir à série para jogarem juntos.

Para Pedro Rovai, jogador de xadrez e conselheiro do Clube de Xadrez São Paulo, a trama juntou os dois mundos: enxadristas e leigos. “Outros conteúdos que foram feitos têm dificuldade de agradar ao grupo não enxadrista, afinal, é uma linguagem própria, o jogo é complexo. Mas a série consegue isso.” Nos primeiros 28 dias no ar, mais de 62 milhões de pessoas em todo o mundo assistiram ao seriado, o que o fez atingir o posto de minissérie de ficção mais vista do streaming de todos os tempos. Além de ter chegado ao Top 10 de 92 países (inclusive o Brasil).

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Uma das razões para o sucesso foi a maneira midiática que Scott usou para falar de xadrez, trazendo dinamismo para o tabuleiro. “Eu gostei que eles conseguiram realmente passar a emoção do jogo. As pessoas acham que xadrez é uma coisa sem graça, mas não é porque ele não é barulhento como o futebol que não é emocionante”, pontua Malu. Outras questões levantadas durante os episódios também foram um diferencial – desde feminismo e moda, com os figurinos espetaculares criados por Gabriele Binder, até o contexto da Guerra Fria e o abuso de substâncias químicas.

Justamente pelo protagonismo feminino que a carioca Gabrielle Monteiro, de 36 anos, voltou a estudar xadrez. “Se fosse a mesma história, porém no lugar da Beth um menino jovem, a série não teria o mesmo glamour”, diz ela, que trabalha como enfermeira. Nas horas vagas, ela e o marido jogam partidas. “Confesso que não jogava havia algum tempo. Mas, depois da minissérie, achei tempo para me sentir um pouco como a Beth.”

Assim como ela, a fortalezense Thaís Albuquerque, de 20 anos, que viu a série em apenas um dia, quis aprender mais sobre o jogo. “Sempre gostei de dama, jogos de tabuleiro, mas nunca tive proximidade com o xadrez. A série me deu abertura para que eu de fato fosse atrás”, explica.

Dedicação

Segundo o Google Trends, houve um aumento de 91% nas buscas de xadrez no YouTube, como fez o mineiro Eduardo Dicarte, de 39 anos. “Achei alguns canais e comecei a praticar sozinho. Hoje as plataformas ensinam muito.”

O canal Xadrez Brasil logo percebeu esse público adicional e passou a produzir conteúdos relacionados ao título. Além de uma playlist com as sete melhores partidas, na qual eles avaliam cada movimento, o vídeo que ensina a jogar xadrez em 10 minutos tem mais de 11 mil visualizações. “Tivemos um aumento considerável no número de inscritos – tanto no Instagram quanto na academia de xadrez”, diz Rafael Leite, apresentador do canal, que acredita que a série ajudou a quebrar o paradigma de que o jogo é “somente para gênios”.

Apesar de todo o talento de Beth, xadrez é um esporte que envolve muita dedicação. Foi por isso que o engenheiro químico Vicente Manera, de 54 anos, decidiu parar no primeiro ano da faculdade. “Eu era muito competitivo, e vendo o nível das pessoas no torneio pensei: ‘Para ganhar vou ter de estudar muito e não vou conseguir estudar engenharia’.” Mas o amor pelo jogo reacendeu com a série. “Ela trouxe de volta meu prazer de ver e jogar uma partida bem jogada”, afirma ele, que treina com a filha Júlia, de 13 anos.

O jogo é para todas as idades, porém O Gambito da Rainha não é apropriada para menores de 16 anos. Por isso, Denis e Liliana Yamamoto decidiram editar a série antes de mostrar para os filhos apaixonados por xadrez: Mariana, de 9, e Pedro, de 7 anos. “Meu pai me mostrou só as partes dos tabuleiros”, diz Mariana, que aprendeu a jogar com 4 anos e já é Mestre Nacional pela Confederação Brasileira de Xadrez (CBX). “Como a série fala bastante de alguns enxadristas que eles estudam, é uma forma de ‘fazer a lição de casa'”, brinca Denis.

Núcleo enxadrista

Dentre as polêmicas da série, o título foi a maior delas. “Gambito da dama é o nome de uma abertura do jogo, pois a peça do xadrez é a dama, não a rainha”, explica Pedro. No entanto, a palavra também significa sacrifício e, num sentido mais filosófico pode representar o sacrifício da rainha, Beth Harmon, para jogar.

Para a hexacampeã brasileira Juliana Terao, de 29 anos, o machismo mostrado na série é “light” em comparação com a realidade. “Ela era uma desconhecida e conseguiu entrar nos torneios de elite muito facilmente. Quando comecei a jogar em campeonatos abertos, normalmente eu era a única menina”, diz ela, que aprendeu xadrez aos 5 anos. “Quando tinha 9 anos e ganhei de um mestre, falaram para ele: ‘Nossa, perdeu para uma menininha’. São coisas que você não escuta com menino; escuta que ele era um gênio, um prodígio.”


Apesar disso, a campeã é otimista. “As coisas estão melhorando, mas ainda não de igual para igual. Você ver que uma mulher pode chegar lá, dentre os melhores do mundo, desperta uma ideia”, diz Juliana. Ela integra o grupo Damas em Ação Rumo à Maestria, que promove o xadrez feminino no Brasil. Os canais Mulheres Enxadristas e Capivaras no Xadrez também lutam para haver mais Beths nos tabuleiros.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


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