No início dos anos 1940, em plena Segunda Guerra Mundial, o músico e ativista Woody Guthrie trazia em seu violão a seguinte inscrição: “essa máquina mata fascistas”. Nos dias de hoje, Spike Lee poderia trazer em sua câmera uma mensagem semelhante: “essa máquina mata racistas”.

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“Sou um grande historiador. A história se repete, mas só podemos aprender com ela se acordarmos.” Spike Lee, diretor

Nenhum cineasta é tão relevante hoje quanto Spike Lee. Os protestos contra o racismo que se espalharam pelo mundo desde o assassinato de George Floyd aumentaram a expectativa em torno do novo filme do cineasta negro mais importante de todos os tempos. E Lee não decepciona: desde “Faça a Coisa Certa”, de 1989, ele constrói uma carreira artística sólida e coerente baseada em um discurso contundente contra o racismo. Nesse épico de guerra com duras horas e meia de duração não é diferente. O filme, que estreia na sexta-feira 12, na Netflix, conta a história de quatro veteranos americanos que voltam ao Vietnã atual em busca dos restos mortais de um antigo companheiro e um tesouro enterrado na época da guerra. A premissa é perfeita para Spike Lee criticar a desigualdade racial e o modo como o conflito americano no sudeste asiático foi mostrado pelo cinema. Nomes como Rambo e Chuck Norris, típicos estereótipos dos veteranos do Vietnã, são abertamente ridicularizados. Há uma ironia mais sutil em relação à própria identidade do esquadrão que dá nome ao filme, “Bloods”: é o mesmo nome da principal gangue de Los Angeles. Na metáfora com a guerra urbana, a população negra se enfrenta entre si e se torna o próprio inimigo.

REVOLTA “Faça a Coisa Certa” (1989): ecos de George Floyd (Crédito:Divulgação)

No Vietnã atual, onde se passa o filme, o fantasma da “guerra dos americanos” está em toda a parte, mas escondido na hipocrisia que aos poucos é escancarada pela narrativa. Em um bar, o telão exibe “Apocalypse Now”, clássico de Francis Ford Coppola sobre a guerra do Vietnã. Não é uma piada gratuita: é uma alfinetada nos filmes sobre o conflito, que costumam realçar apenas o valor dos heróis brancos. Em outra cena, quando os veteranos passeiam de barco por um rio, há uma trilha incipiente da “Cavalgada das Valquírias”, de Richard Wagner, outra citação irônica a Coppola. Aqui, porém, não há nenhum traço do glamour apresentado pelo personagem de Robert Duvall, que “ama o cheiro de Napalm pela manhã”. Os personagens de Lee não amam nada naquele pedaço esquecido do mundo, a não ser uns aos outros.

OSCAR “Infiltrado na Klan”: prêmio de melhor roteiro a Lee (Crédito:Divulgação)

Rei lear

A trilha sonora é um personagem à parte. A combinação da orquestra de Terence Blanchard com as canções de Marvin Gaye imprimem à produção um caráter nostálgico e emotivo. Difícil dizer o que é mais impactante, se são as cenas de ação — ao melhor estilo Tarantino— ou o elenco. Clarke Peters (Otis), Norm Lewis (Eddie) e Isiah Whitlock, Jr. (Melvin) estão bem, mas Delroy Lindo (Paul) está excepcional. A transformação de seu personagem ao longo do filme remete ao Rei Lear, de Shakespeare — a loucura se infiltrando pouco a pouco no vácuo deixado pela razão. Nem o carinho entre os ex-companheiros salvam Paul de seu destino. Spike Lee aprimorou sua linguagem e se torna um cineasta ainda mais autoral a cada filme. Em meio à ficção, fica à vontade para inserir a foto de uma vítima real da guerra ou diálogos que sustentam sua visão de mundo. “Lutamos uma guerra imoral que não era nossa, e por direitos que não tínhamos”, afirma Paul. O conflito no Vietnã acabou em 1975, mas a batalha contra o racismo segue viva nos corações e mentes de todo o mundo.