Atacado por sua imitação, Adnet prestou queixa na polícia: “Querem que a gente sinta medo e se cale” (Crédito:Globo/Sergio Zalis)

Alguns dos poucos momentos divertidos da campanha eleitoral de 2018 se deveram ao talento do humorista Marcelo Adnet, 37 anos. Ao encenar sátiras dos candidatos à presidência e ao governo do Estado do Rio de Janeiro, feitas por meio de imitações encomendadas pelo jornal O Globo, Adnet trouxe irreverência a um ambiente repleto de ódio e fanatismo. Para fazer o brasileito rir, o comediante estudou exaustivamente as frases e os vícios de linguagem dos imitados, produzindo uma série hilariante. Mas nem tudo foram flores. A caricatura do candidato Jair Bolsonaro foi recebida com ameaças de morte — e Adnet viu seu nome achincalhado por “fake news”. Sua reação foi denunciar o caso à polícia e processar criminalmente aqueles que o atacaram pelas redes sociais. “Fiz um número de comédia e fui ameaçado de morte por mais de uma pessoa”, disse Adnet nesta entrevista à ISTOÉ. “Há um tipo de censura que já é uma realidade. As pessoas já estão sendo agredidas ou morrendo nas ruas, assassinadas por sua posição política. O Brasil já está numa situação de grande ameaça à democracia”.

Você recebeu ameaças por causa da imitação dos políticos?

Na primeira do Bolsonaro, sim, recebi algumas ameaças do tipo “quando você vier na minha cidade vou te bater” ou “vou te dar um tiro de 12 na cara”. Fui ameaçado com tiros e porradas. Foi uma ou outra pessoa, não é todo mundo que chega com um tiro na ponta da língua. É uma minoria. E não sei se as pessoas fariam isso de verdade. Mas temo pela minha própria vida. Precisei entrar na Justiça contra essas pessoas para saber o que elas pretendem. Não quero dinheiro, não quero vingança, não quero nada disso. Só quero defender o direito do brasileiro de opinar. Não cometi nenhum crime na minha imitação e merecia o mínimo de respeito.

Você entrou na Justiça contra quem te ofendeu?

Exatamente. É um processo que está correndo em sigilo, eu não tenho os detalhes dele, mas a gente acionou essas pessoas por ameaça. Houve algumas que criaram “fake news” com meu nome e estão sendo processadas por difamação e calúnia.

O que você acha desse baixo nível de tolerância para o humor durante a campanha eleitoral?

Os brasileiros estão pagando um mico histórico, uma vergonha internacional. Os gringos olham para a gente com uma cara de “o que está acontecendo?, o que essas pessoas estão fazendo, porque essas pessoas estão passando por essa situação?”. É um momento totalmente estapafúrdio, ilógico, irracional. Eu não sei explicar por que a gente chegou neste ponto. O governo do PT errou, criou uma bola de neve, um fantasma. Mas o monstro do anti-petismo cresceu muito além do que se imaginava e acabou por deixar muita gente com raiva. Veja o tipo de clima que a gente está vivendo. Não é nada democrático. Quando insisto em fazer meu papel na comédia, quando vou à Justiça, estou, na verdade, pequenininho, no meu microcosmo, lutando para que a gente tenha direito de se expressar.

Normalmente a política oferece uma boa matéria-prima para a comédia. Ficou arriscado fazer humor político?

Virou arriscado, mas a gente não pode parar por isso. Porque acho que o objetivo daqueles que ameaçam, daqueles que produzem notícias falsas contra as pessoas que se expressam, é fazer com que a gente pare. Querem que a gente sinta medo e se cale. Rola uma ameaça organizada, não é uma coisa espontânea. É uma ameaça que vem de algum lugar e a gente não consegue saber exatamente de onde.

Não existe neutralidade no atual contexto?

Acho que não. Muita gente realmente não entende o que está acontecendo. Os próprios analistas políticos não estão entendendo este momento. Então imagina a pessoa comum, menos ainda. Uma coisa é a gente não saber o que dizer e não querer falar. E outra é ter coisas para dizer, mas não querer falar porque vai dar problema, porque vai causar algum tipo de prejuízo, porque vou ser ameaçado e vai ser ruim para minha família. Cria-se esse ambiente totalmente hostil à política, hostil a qualquer debate.

Você disse ter realizado um “trabalho jornalístico” para fazer essas imitações. Pode explicar?

Eu vejo as sabatinas, entrevistas e discursos principais com um caderno ao lado e vou anotando as principais frases e os principais vícios de linguagem. Quando chega ao final, depois de um par de horas, vejo tudo que foi anotado e tento organizar o material para construir um discurso. Aí você tem um esforço jornalístico. O trabalho não está só em anotar as características de linguagem dos candidatos, mas em editar tudo isso, transformar num texto só e colocar o humor para dar uma liga.

Quais foram os mais fáceis e os mais difíceis de imitar?

Teve três que eu imitei de cara, sem estudar muito, que foram o Ciro, o Bolsonaro e o Eduardo Paes. Os outros eu estudei mais. Acho que tiveram três que foram importantes conquistas — o Haddad, o Alckmin e a Marina, que eu não tinha ideia de como eu ia fazer. Mas o resultado ficou muito legal. O mais desafiador foi o Haddad porque ele não tem uma característica muito importante na fala. Ele não é caricato e é muito sutil. Não sabia como imitá-lo, mas acho que rolou, então foi a mais surpreendente para mim. A mais fácil talvez tenha sido a do Henrique Meirelles, porque ele parece um personagem e já tem uma característica caricatural. Não é como Haddad, que você precisa procurar onde está essa característica. No Meirelles ela já vem sublinhada.

E o Bolsonaro especificamente?

O Bolsonaro fala muita besteira, fala muita coisa polêmica, fora da casinha, coisas absurdas, então fica mais fácil para construir um personagem que é tão caricato. Perto dos outros foi mais fácil porque ele tem uma caricatura forte.

Você considera que faz um humor militante?

Não, no máximo ele seria militante pela democracia. Porque fala de todos os candidatos, deu espaço para todos. Mesmo o João Amoedo, que nunca foi a um debate, teve espaço no meu tutorial. A Vera Lucia, o Eymael, o João Goulart Filho, de quem pouco a gente ouve falar, tiveram espaço também. A Marina, que teve uma votação menor que a do Daciolo, teve o espaço dela. Então são momentos em que os candidatos têm voz, têm espaço, até de forma mais equânime e mais democrática do que na mídia tradicional ou na propaganda política.

E politicamente, como você se situa?

É um momento complicado, está todo mundo com dificuldade de se situar e para mim não é diferente. Eu consumi muito material, vi muitos candidatos falarem e parece que há uma certa morte da política como a gente conhecia. Não tem mais discussão de pauta, não tem debate, não tem proposta, o que tem é meme, ataque, fabricação e circulação de notícias falsas. O debate chegou num ponto muito preocupante de esvaziamento e acirramento dos conteúdos.

Você compara nossa situação com a do Trump?

Não, acho que Bolsonaro é muito mais à direita do que Trump. Perto do Bolsonaro, o Trump é um moderado. O problema no Brasil é muito mais grave do que o dos Estados Unidos, até porque lá você não tem um clima de comediantes serem ameaçados. Trump tem barbaridades extremistas como o muro, ou aquilo que foi feito com as crianças na fronteira, mas aqui estamos num terreno menos democrático que os Estados Unidos e as ameaças são maiores. Se elas vão se concretizar ou não a gente não sabe.

O que você acha que pode acontecer se o Bolsonaro for eleito?

Nesse momento o que existe é incerteza. Já que não houve debate, não houve proposta na mesa, a gente não sabe o que vai acontecer. O que paira sobre esse eventual governo é dúvida e a gente torce para que tenham vozes discordantes no Brasil, para que tenha uma voz de oposição. Nos Estados Unidos há uma oposição estabelecida ao Trump.

Você teme, por exemplo, uma volta da censura?

Acho que a censura como a gente conheceu no passado é difícil. Isso geraria uma reação muito grande da sociedade civil. Mas agora há uma censura diferente, como a que está sendo feita comigo. Tentativas de intimidação, coerção e ameaças são uma forma de censura. Fiz um número de comédia e fui ameaçado de morte por mais de uma pessoa. Essa censura é uma realidade. As pessoas estão sendo agredidas ou morrendo nas ruas, assassinadas por sua posição política. Não é que em 1º de janeiro vai virar. O Brasil já está numa situação de ameaça grande à democracia. Parece uma coisa incontrolável, há uma vontade de sair dando tiro na cara dos outros. Há uma ideia de se armar para matar pessoas que cometem crimes. Há uma luta dos cidadãos de bem contra as pessoas do mal. É uma simplificação grotesca da sociedade brasileira.

Há um discurso contra minorias. De onde vem isso?

Isso eu já não consigo entender. Não vejo nenhuma razão lógica e palpável para esse discurso. O próprio Bolsonaro usa sua imunidade parlamentar para dizer que é homofóbico. Mas qual é o poder que o presidente vai ter sobre isso? Ele já teve o poder de normalizar um discurso e dizer que aquilo é pecado, é errado, é vergonhoso e digno de piada. Então eu não consigo entender isso e fico muito preocupado. Eu que sou homem, hétero, rico, branco, fico muito preocupado com meus amigos e minhas amigas que moram na periferia ou que são pretos ou LGBT ou que militam no campo da esquerda.

As imitações vão continuar?

A gente fez um teaser na semana passada que falava de Temer e do segundo turno e também uma série com os candidatos para os governos do Rio, São Paulo, Minas e Rio Grande do Sul. Na sexta-feira antes da eleição, vou preparar uma surpresa, alguma coisa que estamos bolando e que deve envolver os dois candidatos à presidência. Depois da eleição, as imitações vão continuar, mas não no mesmo ritmo. Tem muita coisa acontecendo na política e é bom acompanhar de perto.

As suas imitações tiveram algum impacto eleitoral?

Isso a gente nunca vai saber, mas não acredito. Se houve foi muito pequeno. Acho que tudo que a gente faz dentro desse debate influencia. O trabalho que fiz foi isento, e dificilmente se transformaria em votos. Nosso objetivo não era convencer eleitores do que quer que seja. Era muito mais fazer comédia em cima das eleições e convidar as pessoas para um outro tipo de debate.