Não é de hoje que o cinema busca inspiração em personagens reais do mundo do crime como fonte para histórias de forte apelo popular. Em Hollywood, é impossível nomear todas as tramas baseadas nos casos do gângster Al Capone ou dos mafiosos Frank Rosenthal e Jimmy Hoffa, apenas para citar alguns escroques. No Brasil não é diferente. Nos anos 1960 e 1970, embora diante de personagens menos glamourosos, o público lotava as salas para ver o Bandido da Luz Vermelha e Lúcio Flávio, Passageiro da Agonia. O cinema nacional tratava a marginalidade como um problema social que apavorava a classe média, sem a sofisticação dos bandidos americanos. Em comum, a violência e a crueldade. Nos anos 2000, a coisa mudou por aqui. Sucessos como Cidade de Deus, O Invasor, Ônibus 174 e Tropa de Elite, entre outros, substituíram os bairros centrais pelas comunidades e a periferia, dando origem a um gênero que se tornou a grande referência do cinema brasileiro no exterior: o “Favela Movie”.

O estilo cresceu — e amadureceu. Uma nova leva de produções nacionais usa a linguagem e temática do formato para levar as histórias a um novo patamar artístico, narrativo e de investimentos.

Exemplo recente dessa tendência é Bandida: A Número Um, filme de João Wainer que estreia nos cinemas. O filme retrata a violência nas comunidades do Rio de Janeiro nos anos 1980, sob a perspectiva de Rebeca, a primeira mulher a chefiar o tráfico na Rocinha. Interpretada por Maria Bomani, é uma personagem complexa que vive uma infância tumultuada e ascende ao poder após a morte de seu namorado, o chefe do tráfico Pará.

O filme é baseado na história real de Raquel de Oliveira, autora do livro A Número Um. Wainer utiliza imagens de arquivo e gravações com uma câmera Betacam para recriar uma estética oitentista, oferecendo um retrato visceral e autêntico do período.

“O que impressiona é a qualidade do livro da Raquel. Graças ao texto dela, que combina ação e emoção, foi possível encontrar um caminho original”, afirma Wainer. Para o diretor, no entanto, o rótulo de “favela movie” incomoda. “O termo é limitador porque passou a ser aplicado a qualquer produção que acontece dentro da comunidade. Pode ser comédia, ação ou drama, o local onde foi feita a filmagem não deveria definir o gênero.”

Por coincidência, Wainer acaba de lançar uma cinebiografia inspirada em outra mulher envolvida com a contravenção: Doleira: A História de Nelma Kodama (Netflix) conta a trajetória da primeira mulher presa na Operação Lava-Jato.

‘Favela movie’: novos filmes mostram realidade complexa da marginalidade
Dom, interpretado por Gabriel Leone (ao centro): na série da Amazon, filho de policial se tornou um dos criminosos mais procurados do País (Crédito:Divulgação )

“O termo ‘favela movie’ incomoda porque é limitador. Pode ser comédia ou drama, o local onde foi feita a filmagem não deveria definir o gênero.”
João Wainer, diretor

Outra produção impactante é a série O Jogo que Mudou a História, disponível no Globoplay. Idealizada por José Junior, do grupo AfroReggae, e dirigida por Heitor Dhalia, a série explora a criação das facções criminosas no Rio de Janeiro no final dos anos 1970.

Com cenas filmadas em locações reais, como os presídios Bangu 1 e o Instituto de Perícia Heitor Carrilho, a série destaca a precariedade do sistema carcerário brasileiro e mostra como a convivência entre presos políticos e bandidos perigosos gerou o Comando Vermelho e o crime organizado. A narrativa é baseada em relatos de antigos presidiários e carcereiros, oferecendo um retrato cru da vida nas prisões.

‘Favela movie’: novos filmes mostram realidade complexa da marginalidade
O Jogo que Mudou a História: convivência na cadeia entre presos políticos e bandidos perigosos deu origem a facções como o Comando Vermelho (Crédito:Divulgação )

Já o Prime Video lançou recentemente a terceira temporada de Dom, protagonizada por Gabriel Leone. Inspirada na vida real de Pedro Dom, jovem de classe média que se tornou um dos criminosos mais procurados do Rio de Janeiro, explora a relação entre crime e família — seu pai era policial.

Na última temporada, Dom tenta viver como um homem livre, ao mesmo tempo que enfrenta a polícia e uma dívida com o tráfico da Rocinha, enquanto seu pai, Victor, luta contra o câncer.

Essas produções refletem uma nova era no audiovisual brasileiro e ajudam a promover uma reflexão sobre os problemas do País. Com foco na autenticidade e nas narrativas impactantes, não apenas capturam a realidade brutal das favelas e prisões, mas humanizam seus protagonistas, destacando suas complexidades — e, com isso, mostram que o problema é bem mais difícil de ser resolvido do que podemos imaginar.