TENSÃO A vice Cristina Kirchner e o presidente Alberto Fernández não se falam há meses e a população teme um novo “corralito”, com dinheiro preso nos bancos como em 2001 (abaixo) (Crédito:Natacha Pisarenko)

Moeda indexada, parque industrial com ênfase na produção automobilística e mercado interno limitado. Esses são os principais fatores que levam a Argentina a seguir seu destino de crises cíclicas, desta vez em situação agravada por dois anos de pandemia mais uma guerra que paralisa exportações e importações. O país bateu o recorde mundial de taxa de juros no dia 12, de 47% a 48%, e viu a inflação chegar a 58% ao ano – o maior índice do país em 30 anos, de acordo com o Instituto Nacional de Estadística y Censos de la República Argentina (Indec). Perto da metade da população de 46 milhões de habitantes passa fome, enquanto o presidente Alberto Fernández admite estar brigado com Cristina Kirchner, a sua vice. Os dois representam vertentes diferentes do peronismo, o populismo que se eterniza há quase um século. Para completar o quadro negativo, os casos de Covid-19 (com predominância da variante BA.1 da Ômicron, até 40% mais contagiosa que a anterior) aumentaram 305,2% desde 17 de abril. O salto foi de 92,6% apenas na última semana, com perto de 34 mil novos casos confirmados.

Juan Mabromata

Em determinado momento, Argentina e Brasil focaram seu processo de industrialização em automóveis. Aqui o objetivo era o consumo interno, mas no país vizinho as montadoras visavam mais à exportação. E, mesmo tentando diversificar a indústria e a produção de bens de consumo, manteve o foco maior na agroexportação, tornando-se dependente em larga escala de produtos importados. E a opção pela indexação da moeda com âncora cambial para favorecer a exportação também teve seu contrapeso, como destaca Luciana Mello, professora com especialização em História das Relações Internacionais pela UERJ.

A Argentina acabou em desvantagem diante dos investidores internacionais, que ainda preferem apostar no Brasil, com imensas riquezas materiais e mercado interno gigantesco. Os argentinos, ao contrário, têm um mercado pequeno se comparado brasileiro (até pela limitação do território), não expandiram o setor primário e ainda minimizaram o impacto do avanço da tecnologia somado à globalização, segundo Luciana. “A engrenagem roda quando se produz e a população está com poder de compra. A demanda cresce, assim como o PIB. O Brasil investiu mais que a Argentina na indústria, nos bens duráveis [que viabilizam produtos intermediários e serviços]. Temos uma roda maior para girar.”

Pandemia e guerra impedem importação e Argentina sofre

Chacoalhada internacional

Com pandemia e guerra, os portos em todo o mundo estiveram bloqueados e o mercado externo parou. Os países se voltaram para dentro, para não perder tudo, como o Brasil. Mas a Argentina, sem mercado interno fortalecido nem resguardado, e com moeda desvalorizada por tanto tempo, se vê mais uma vez “em meio à quebradeira”, diz Luciana. “O país é muito dependente dos produtos importados, que não chegam desde o lockdown pela pandemia. Ficou sem abastecimento. Faltam mesmo os produtos básicos nos supermercados. E os preços sobem, porque fica tudo mais caro na cadeia produtiva, até pela alta do combustível. Com essa chacoalhada do mercado internacional, a economia argentina não consegue se estabilizar.”
De acordo com o Instituto para el Desarrollo Social Argentino (Idesa), 40% da população são considerados de classe média, mas apenas metade pode ser classificada de “classe média acomodada”, com salário em torno de 350 mil pesos (US$ 3 mil) e poupança em dólar; a outra metade seria a “classe média frágil”, que precisa dos ganhos de toda a família – se um membro perde o emprego, o núcleo desmorona.

É um cenário melancólico para o país que estava entre as maiores potências do início do século XX e se orgulhava de ter um dos maiores índices educacionais da América Latina. Na região, os piores índices socioeconômicos ainda estão com a Venezuela. Mas, no caso desse país, existe a previsão do Credit Suisse de queda significativa da inflação (de 150% para 70% ao ano), pela aceleração da economia e pelo aumento na exportação de petróleo. Pelas perspectivas, a lanterna poderá ser repassada para a Argentina.

SÓ CARROS Argentina errou ao colocar peso muito grande na indústria automobilística, sem diversificar a produção de bens (Crédito:Agustin Marcarian)