Família mantém deficiente mental presa em quarto com grade no interior paulista

Sem conseguir internação ou tratamento adequado para a filha F., de 31 anos, deficiente mental, uma família de Serrana, no interior de São Paulo, tomou uma decisão drástica: trocou porta e janela do quarto da jovem mulher por grades e a mantém encarcerada há um ano e meio. Quando estava livre, a jovem fugia de casa e, na rua, era vítima de bullying, agressões e até violência sexual. “Sei que não está certo e não gosto de fazer isso, mas se não tem como internar num hospital, a gente não tem outro jeito de lidar com essa situação”, disse o pai, o autônomo Petrônio Gonçalves, de 63 anos.

O caso chegou ao conhecimento da Polícia Civil na semana passada. Na sexta-feira (8), o delegado José Augusto Franzini, titular da delegacia local, foi à casa pensando até num possível flagrante, mas mudou de ideia ao se inteirar da situação. “É uma situação deprimente, mas parece claro que a família não teve saída, pois não conseguiu do município e do Estado o apoio necessário para internar e tratar a filha”, disse. Há seis meses no município, o delegado verificou que a família havia registrado vários boletins de ocorrência envolvendo a jovem, ao menos quatro deles por abusos sexuais que ela sofreu quando fugia de casa. Os casos são investigados como estupros.

Gonçalves conta que a filha foi acometida de meningite aos dois meses de vida e ficou com sequelas. F. cresceu, seu corpo se desenvolveu, mas ela continuou com a idade mental de uma criança de sete anos. A menina frequentou escolas especiais e teve acompanhamento psicológico. Depois dos 20 anos, no entanto, ela se tornou agressiva e passou a ter compulsão por sair de casa. Quando era impedida, quebrava o que achava pela frente e agredia os familiares. O pai relata que quase sempre ela voltava, ou toda suja, ou com algum objeto provavelmente furtado. Em várias ocasiões, tinha as roupas rasgadas e relatava ter sido abusada sexualmente por desconhecidos. “Em sua mente, ela quer ter filhos, por isso permite que os homens abusem”, contou.

A filha chegou a pular o muro da casa para fugir. Na rua, tomou um ônibus e viajou para Ribeirão Preto sem pagar passagem. Muitas vezes a polícia a levou para casa. Quando a família decidiu trancá-la no quarto, a jovem se rebelou e arrebentou a porta. Depois quebrou móveis e a televisão, além de lançar ferramentas contra os pais e o irmão. Foi então que eles decidiram que era o caso de trocar porta e janela por grades de ferro, chumbadas na parede. Por um período, a mulher ficou internada num hospital de Ribeirão Preto, mas teve alta e voltou a agir da mesma forma.

Conforme o pai, os médicos disseram que F. deve ser tratada com remédios, em casa, mas os medicamentos parecem não fazer efeito. Ele também procurou os serviços de saúde municipais, mas não conseguiu nova internação. “A gente queria que ela fosse internada, tratada, com acompanhamento e vigilância, mas não foi possível. Disseram que tem de ser medicada e tratada em casa. Então, fizemos isso. É triste, mas ao menos ali, trancada, ela está segura.” O delegado apura crime de cárcere privado, mas também se houve omissão do poder público. “Vamos ouvir os pais, parentes e testemunhas, mas também representantes do município e do Estado para apurar se houve atendimento.”

A prefeitura de Serrana informou que, no dia 1.o de setembro, a coordenação do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) recebeu ligação anônima informando a situação de cárcere privado de F. “Imediatamente duas assistentes sociais se dirigiram à residência, onde constataram a situação. A paciente foi reencaminhada ao Ambulatório de Saúde Mental do município, que também disponibiliza os medicamentos necessários para o tratamento.” Segundo a nota, o município está se desdobrando para auxiliar no tratamento, mas a internação permanente é uma decisão que cabe ao médico e não à família “que tomou a decisão isolada de mantê-la em cárcere privado”.

A Secretaria da Saúde do Estado informou que a paciente foi atendida no Hospital Santa Tereza, em Ribeirão Preto, até receber alta em setembro de 2013, com indicação para acompanhamento ambulatorial na rede municipal de Serrana. Após essa data, não houve nova solicitação para internação na unidade. De acordo com a pasta, a Política de Saúde Mental do Sistema Único de Saúde (SUS) estabelece que o atendimento psicossocial deve ser prestado pela rede municipal, por meio dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), unidades administradas pelas secretarias municipais de saúde. Somente casos mais graves de saúde mental devem ser encaminhados para internação, definida mediante avaliação médica.