Quando fala na péssima gestão da pandemia no Brasil, a médica infectologista Luana Araújo, 40 anos, não cita o nome de nenhum político, ex-ministro e nem o do próprio Jair Bolsonaro, chamado por ela de “criatura”, que tenha fracassado em seu compromisso público. Mas o tempo todo sabemos de quem ela está falando, dos quatro nomes que já passaram pela pasta da saúde neste governo e de uma administração vergonhosa que contribui para um aumento exponencial do sofrimento da população e do número de mortes. Funcionária do Ministério da Saúde por dez dias, em 2021, no começo da gestão de Marcelo Queiroga, ela viu ali que não havia espaço para a racionalidade, mas só para a mesquinharia política. Formada em medicina na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e com mestrado na Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, Luana tem claro que os atuais gestores da saúde se dedicam a promover a desinformação e deixar a população confusa. “Um dos grandes problemas foi a falta de um cérebro capaz de compreender o que é uma doença infecciosa e de aplicar medidas plausíveis baseadas na ciência”, disse em entrevista para a ISTOÉ. “Enquanto o mundo inteiro agiliza a vacinação de crianças, por aqui a abordagem é completamente desconectada da realidade.”

Você critica a postura do governo em relação à vacinação das crianças. É mais uma sabotagem?
A análise é sempre da política de saúde. E acho que a gente está vendo que a condução dessa política foi majoritariamente inadequada nesses dois anos. Foi anacrônica e contraproducente. Quando a gente olha para um sistema de vacinação avançado, que tem solidez – o programa brasileiro é invejado no mundo inteiro -, essa condução jogou contra. Jogou contra esse histórico de competência que a gente levou tantas décadas pra desenvolver e, mais do que isso, contra a confiança que a população tinha no sistema. Enquanto o mundo inteiro civilizado agiliza e amplia a vacinação das crianças, compreendendo que essa doença causa problemas não só agudos, como possivelmente crônicos, a gente está aqui fazendo uma abordagem completamente desconectada da realidade.

E qual é o motivo? Por que combater a vacinação de todas as formas?
Acho que inicialmente você pensa em falta de informação. O que já seria bastante grave quando se trata de uma política de saúde pública. Depois você entende que não é só isso e que há uma agenda de prioridades prevalecendo sobre o bem comum. Está claro para todo mundo. Não é exclusividade do Brasil. Em outros países há movimentos antivacina, que são a expressão do momento de uma visão negacionista mais ampla. E é fácil identificar que não é um movimento pró-pessoas, mas pró-dinheiro. Existem pessoas e instituições que se alimentam financeiramente, socialmente dessa manipulação popular, dessa criação de um problema inexistente para a venda de uma solução exclusiva.

E que grupos e pessoas são essas?
É só você abrir o jornal hoje em dia. O grande balizador disso é a percepção de que há pessoas criando problemas inexistentes, com informações incorretas sobre a vacinação, por exemplo, ou oferecendo soluções estapafúrdias, desde medicações a procedimentos médicos. Isso é brincar com a saúde das pessoas. Sou uma ignorante jurídica, não é minha área, mas como cidadã, se isso não é um crime contra a saúde pública então não sei definir o que é. Um dos mais duros aprendizados desse período todo, pelo menos pra mim, foi compreender que a distância entre direito e justiça é gigantesca.

Por que a vacina sofre preconceito de alguns grupos sociais e os remédios não?
Fico tentando entender a mente dessas pessoas. E o que a gente vê é que se trata de um grande mercado explorador. Há uma facilidade de manipular emocionalmente a população. Quando a vacina chegou todo mundo queria, mas aí dizem que a vacina é nova, e você começa a aplicar e vê que as mortes estão diminuindo. Depois começa a vacinação das grávidas. Aí dizem que vai morrer gestante, neném. Nada disso aconteceu. Aí vêm os adolescentes e as crianças. Eles vão tentando pegar nessas ligações emocionais uma oportunidade de fazer dinheiro em cima das pessoas. E fica mais dramático quando você compreende que tudo é feito em cima do sofrimento alheio. É muito cruel de se ver isso. E agora a maioria dos pacientes que apresentam casos mais graves, mais agudos, é de não vacinados.

Vemos que as mortes estão diminuindo. Mas matar é o único grande problema da Covid-19?
Esse é um grande erro também, considerar que o único problema da pandemia é a morte pela doença. Talvez seja o que chame mais atenção numa situação aguda. Mas o que a gente tem visto é que a gestão pública tem prestado pouquíssima atenção, senão nenhuma, à Covid prolongada e às suas sequelas. Há um aumento do número de problemas cardiovasculares associados ao coronavírus e casos de diabetes deflagrados por ele em várias faixas etárias. Vemos também uma pandemia de doença mental e uma piora nos quadros neurodegenerativos. E o sistema de saúde não está lidando com isso. Considerar que se trata de uma doença grave porque ela mata é só olhar a ponta do iceberg. A gente vai ter efeitos dessa pandemia por muito tempo ainda.

Quais grandes erros de estratégia foram cometidos?
Existem alguns imperdoáveis. O primeiro foi ignorar as ferramentas que a gente tinha em mãos. Em uma pandemia você precisa mobilizar todos os seus recursos o mais rápido possível. Nosso sistema de saúde tem qualidades essenciais, como uma grande capilaridade, foco na atenção primária e uma forte conexão com a comunidade. Isso foi completamente ignorado. Nossa resposta foi focada na atenção terciária. O segundo grande erro foi a ausência absoluta de tecnicidade na gestão. Em nenhum momento, talvez na equipe do Mandetta, tivemos pessoal especializado para lidar com a pandemia. E, finalmente, a falta de um cérebro, de uma cabeça pensante conhecedora do sistema de saúde capaz de compreender o que é uma doença infecciosa e de aplicar medidas mais plausíveis baseadas na ciência. Foram quatro ministros da saúde em dois anos. As condições políticas que foram colocadas impediram que pessoas com capacidade técnica suficiente assumissem esses cargos. E houve um esforço para confundir a população ao invés de ajudá-la a compreender o que estava acontecendo.

Quando se fala de desinformação tudo começa com o presidente Bolsonaro?
Acho que o sistema todo que funciona dessa forma, no qual essa criatura, essa pessoa é a parte mais visível e mais potente. E quando você tem uma figura de tamanho destaque todo mundo quer saber o que ela está dizendo, quais são os próximos passos, porque essas são as decisões que influenciam no dia a dia. Seria preciso abandonar as mesquinharias político-partidárias e compreender que a saúde pública está acima de tudo.

Qual a lição que tirou da experiência de dez dias como funcionária do Ministério da Saúde?
Eu me preparei a vida inteira pra fazer o melhor possível e ajudar o máximo de pessoas com as oportunidades que aparecessem. E quando essa oportunidade apareceu a gente estava no pior momento da pandemia. Já tinha uma noção de como as coisas funcionavam no ministério por causa de trabalhos em conjunto. Estava claro para todo mundo que o necessário naquele momento era a retomada do bom senso e eu buscava entregar meu conhecimento de infectologista. Mas vi que era impossível. Não havia espaço para a racionalidade. Você tem uma influência política interna muito grande. A minha sensação lá dentro era de havia uma grande massa de pessoas querendo fazer a coisa certa, mas geridas por indivíduos sem competência e sem comunhão de interesses com a população. Acho que a única infectologista que passou por ali até esse momento em cargos de coordenação fui eu. É o cúmulo.

Houve um ministro completamente ignorante em assuntos de saúde, o Eduardo Pazuello. E quando você entrou era o Queiroga, um médico. Você esperava mais dele?
Quando você fala em gestão de saúde você espera alguém com formação na área, que consiga desempenhar um trabalho mais efetivo. E há sempre uma expectativa maior quando você tem um gestor especializado. Mas vendo os números, acho que eles são muito claros. Na gestão do Queiroga a gente teve mais mortes e uma aceleração da pandemia. Olhando de uma maneira justa, herdou-se uma gestão catastrófica, mas nada se fez para recuperar isso.

Um aspecto positivo disso tudo é a atuação da Anvisa. A agência está cumprindo sua função?
É um grande exemplo de como a gente precisa evoluir na gestão pública para incorporar a ideia de independência política. A independência da Anvisa dá a ela a oportunidade nesse momento de ser técnica. E qualquer outro órgão público que queira ser técnico hoje em dia não consegue. Esse é um problema do sistema, que é vulnerável a interferências políticas a cada quatro anos e não atende a população em longo prazo.

E sobre a variante Ômicron, o que você diria?
É uma variante que acumula mutações que a fizeram muito mais transmissível. Alguns pesquisadores falam de uma capacidade de transmissão para até vinte pessoas. É uma transmissibilidade absurda. E quando se observa uma letalidade menor é preciso tomar cuidado. Ainda que a letalidade seja mais baixa, quanto mais forem infectados, maior será o número dos que irão sofrer com a doença. A Ômicron é extremamente perigosa, em especial para as pessoas não vacinadas, como as crianças. É inadmissível que uma única criança morra por causa da Covid e da falta de vacinação.

Qual é o resultado de seu trabalho nas mídias sociais?
É um lugar em que eu não imaginaria estar, mas que me acolheu e me deu um papel num momento em que as pessoas precisavam me conhecer como técnica. Entendo que quando fui para Brasília ninguém fazia ideia de quem eu fosse. Meu nicho de atuação é muito restrito. Mas quando saí de lá, principalmente depois da CPI, acho que houve uma tentativa de me desqualificar, que passar primeiro pela minha questão profissional, o que obviamente foi infrutífero, e depois buscou me atingir como pessoa, como mulher. É crime de gênero, de ódio, enfim, de calúnia. Teve ameaça, teve tudo. Aí entendi que precisava executar meu trabalho ou parte dele de forma pública. Quando entrei naquela CPI tinha um perfil pessoal com sete mil pessoas me acompanhando, e hoje são 330 mil em um perfil que só fala de ciência.

Você é música, pianista, cantora, o que isso te proporciona hoje?
Sempre estou, estive, e estarei envolvida com a música. Não é uma ligação com o negócio das artes, mas uma necessidade atávica pessoal de saúde mental, de existência e de manifestação. E uma das coisas mais esdrúxulas da face da terra foi quando tentaram me desqualificar como profissional de saúde dizendo que eu era cantora e pianista. Sou pianista clássica, toco desde os dois anos. É absurdo que um traço extremamente valorizado em todos os outros lugares do mundo pelos quais passei, aqui tenha sido usado como algo negativo.