Na frente do Congresso Nacional, em Brasília, um grupo reza ajoelhado de forma fervorosa. A cena está no início do recém-lançado documentário Apocalipse nos Trópicos, da diretora Petra Costa, e aconteceu em 2016, durante a votação do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.
Esse momento simboliza a crescente influência da religião na política brasileira, em parte associada ao avanço da extrema direita. É dessa junção de forças que trata o filme, disponível na Netflix. Nele, Petra, que foi indicada ao Oscar por Democracia em Vertigem, continua sua investigação, feita em tom pessoal, dos últimos anos intensos da política brasileira.
O documentário lembra alguns momentos marcantes da história recente do país: a facada contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva em 2022 e os ataques de 8 de Janeiro. Mas, desta vez, as lentes pessoais da diretora estão direcionadas ao papel de setores fundamentalistas evangélicos na política.
A DW conversou com Petra alguns dias depois de o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), ordenar a prisão domiciliar de Bolsonaro. “Acho importantíssimo que finalmente estejam levando a sério, investigando e punindo uma trama golpista”, disse ela.
Mesmo assim, não espere ver esses novos desdobramentos em um um novo filme da diretora. “Não, não estou filmando a prisão do Bolsonaro. Esse tipo de filme consome muito todas as suas subjetividades, você fica sequestrado pelos acontecimentos.”
DW: De onde surgiu essa vontade de abordar o mundo dos evangélicos no país?
Petra Costa: Surgiu vendo a influência que certas lideranças evangélicas estavam tendo na política nacional. Acabei filmando aquele momento daquele impeachment interminável da Dilma, em 2016. Em uma hora de espera, filmei um ato profético do Silas Malafaia (uma das maiores lideranças evangélicas do país e aliado de Bolsonaro) em frente ao Congresso, que aparece ali no início do filme, em que uma pastora, fala: “que Deus tome o Legislativo, o Executivo e o Judiciário!”.
Aquilo abriu os meus olhos para esse plano “dominionista” (conjunto de ideologias cristãs que postulam uma política exclusivamente religiosa, de base bíblica e fundamentalista) que está em curso no Brasil e que pouco se fala. O filme é um desejo de investigar esse fenômeno através do cinema direto, que eu gosto tanto.
Você acha que essa ligação entre a política e o fundamentalismo evangélico no Brasil ainda é pouco estudada e discutida?
Sim. Por exemplo, para mim a invasão do 8 de Janeiro tem muitas motivações. Mas a motivação religiosa foi muito pouco falada e estudada. Muitos pastores chamaram para aquela invasão. Se rezou muito durante aquela invasão. Houve uma visão do apocalipse naquela invasão. Enquanto nos Estados Unidos tem uns 30 livros sobre as ligações entre esse fundamentalismo religioso e o 6 de janeiro (quando houve a invasão ao Capitólio em 2021), acho que aqui ainda se fala muito pouco. E esse é um componente muito importante da extrema direita e desse movimento autocrático e teocrático.
Por que Bolsonaro virou um veículo para muitos evangélicos conservadores no Brasil, mesmo não tendo um histórico ligado a pautas religiosas?
O que o Malafaia diz é que, desde a eleição de 2014, com a Marina Silva, que teve 20% das intenções de voto, ele percebeu que existia uma força evangélica muito forte que poderia eleger um presidente. Ele e o Bolsonaro começam a ter vários movimentos de aproximação entre 2011 e 2013 e existe um encontro de interesses conservadores ali.
Entrevistei o Bolsonaro muitas vezes no Congresso, em 2016, 2017, e ele nunca falou em religião. Ele começa a falar em 2018, depois que existe uma aproximação clara entre ele e o Malafaia e outras lideranças evangélicas. A esposa dele (Michelle Bolsonaro) foi da igreja do Malafaia por muitos anos, o Malafaia inclusive casou os dois. E a facada, que ele levou em 2018, é a consagração desse casamento entre Bolsonaro e essas forças. Eles começam a falar que o Bolsonaro foi ungido por Deus e sobreviveu a aquela tentativa de assassinato para salvar o Brasil.
Qual foi e é o papel dos religiosos dos EUA na organização dos evangélicos do Brasil?
A gente só começou a arranhar a superfície de uma investigação que precisa ser levada mais a fundo. O que a gente descobriu, graças ao nosso pesquisador uruguaio, que é evangélico, são documentos que mostram como a organização de lobby americano The Family Fellowship, que surge durante a Guerra Fria justamente para levar a religião evangélica fundamentalista para dentro da política americana e mundial, com objetivo de acabar com as “ameaças comunistas”, manda vários missionários para o Brasil, mais precisamente para o Congresso Nacional, para evangelizar congressistas sobre o disfarce de que estariam “dando aula de inglês”.
Alguns críticos dizem que seu filme usou os evangélicos como um “bode expiatório” para uma guinada conservadora no Brasil, quando existem outros atores, como outros setores ideológicos, empresariais e até grupos religiosos que também atuam nesse sentido. Como você responde a essas críticas?
A gente produz poucos documentários para dar conta da riqueza e complexidade dos nossos fenômenos. Precisam ser feitos documentários que investiguem o papel das redes sociais no crescimento da extrema direita no Brasil desde 2013, e também o papel dos militares.
Acho que principalmente esses dois elementos são cruciais na nossa política atual e muito pouco estudados para a relevância que eles têm. O que a gente fez é um pouco uma fusão entre cinema de ensaio com o que se chama cinema direto, que acompanha alguns personagens ao longo de um tempo. Não dá para retratar tudo em um filme.
O papel e a influência dos evangélicos foi mal compreendido pela esquerda progressista nas últimas décadas? A esquerda pode avançar no eleitorado evangélico?
O que acho que acontece muito no campo progressista em relação aos evangélicos é, ou uma atitude de desprezo ou uma atitude de condescendência, de falar: “ah, esse é um campo muito diverso, religião não se discute”, quando, na verdade, com isso, se deixa de olhar um fenômeno que diz respeito a todos.
Existe uma teologia “dominanista” em curso. Se ela é levada a cabo, acaba com a democracia brasileira. Isso diz respeito a todos. Me surpreende o quão pouco isso é parte do debate público, dada a importância e a rapidez com que esse projeto está sendo bem-sucedido no Brasil.
Quanto ao campo progressista, já existem muitos pastores progressistas. Acho que o principal desafio que eles enfrentam é uma perseguição muito grande. Há lideranças evangélicas que perseguem esses pastores e muitas vezes os expulsam. O que estamos vendo? Uma perseguição religiosa que nos traz de volta para a Idade Média. As guerras religiosas levaram à morte de muitas pessoas. E a gente viu um pouco disso acontecer na última eleição, quando tiveram mortes. Se a gente não tomar conhecimento disso e não criar medidas para impedir isso, a tendência é que só aumente.
Uma das críticas à esquerda nos últimos tempos é que ela não consegue mais falar com a periferia, com os trabalhadores. No filme, você diz que a extrema direita passou a encarnar um “fervor revolucionário” e o próprio Lula diz, em entrevista a você, que os sindicatos, por exemplo, não conseguem se comunicar com alguém que perdeu um emprego. Como acha que as forças de esquerda podem voltar a se comunicar com essa parcela da população?
As pessoas precisam de transcendência, precisam sonhar futuros utópicos. E a esquerda, infelizmente, virou gerente de crise do sistema capitalista, um sistema com o qual ela nunca concordou, mas que agora virou defensora. Enquanto isso, a extrema direita adotou um ímpeto revolucionário e quer fazer essa “Revolução Francesa” ao contrário.
Querem acabar com a República, acabar com a democracia e estabelecer reis ungidos por Deus. É isso que o Trump está fazendo nos Estados Unidos e isso é o que a extrema direita quer fazer no Brasil. E o que a esquerda quer? Eu acho que a esquerda ainda não sabe o que ela quer. E isso não só no Brasil como no mundo. A esquerda ainda está vivendo a crise existencial da queda do muro (de Berlim), do fim da Guerra Fria, e tendo que lidar com essas invasões subterrâneas das redes sociais, do fundamentalismo religioso. A gente precisa urgentemente inventar mecanismos de controle, de regulamentação, porque essas forças sequestraram a nossa democracia.