Raimundo Fagner não tem só a vida que aparenta ter. Aos 70 anos, considera que sua história ainda não foi contada e que, ao menos parte dela, está próxima de ser publicada em um livro sobre suas aventuras com o futebol, muito menos conhecidas do que as performances de cantor.

Enquanto finaliza um álbum em clima de tributo a seus 50 anos de carreira (se considerarmos que, em 1971, Fagner gravou seu primeiro compacto com Wilson Cirino), no qual só canta as serestas que marcaram seus primeiros anos, ele relembra a carreira que não teve simplesmente por não poder estar em dois lugares ao mesmo tempo.

Numa das vezes em que foi escalado pelo time do Fortaleza, em um amistoso de 2002, quando a equipe subiu para a série A, Fagner acabou entrando aos dez minutos do segundo tempo quando pensava que só havia sido chamado para fazer graça nos instantes finais.

O técnico Luiz Claudio Cruz o colocou no lugar de Clodoaldo e o jogo era contra o Maranguape, o único time que não havia perdido para o Fortaleza durante a temporada. Um jogo tão duro, com um beque de tamanha sede, que o artista precisou pedir: “Pô, cara, alivia um pouquinho aí”. E o beque respondeu: “Só se você der um CD pra eu levar pra minha mulher”. Mas o técnico do Maranguape percebeu o conluio de compadres e gritou da beira: “Não dá mole que ele é um perigo”.

Fagner começa seu dia com uma corrida de manhã pelo Leblon, de máscara. Mora sozinho entre Rio e Fortaleza, “dependendo do clima”, e faz amigos nas mesmas quantidades industriais com que vendia LPs nos anos 1990. Inimigos também, sempre que o ibérico mais bélico dá as caras. Depois de fazer um vídeo apoiando o então candidato Jair Bolsonaro para rebater uma espécie de pegadinha feita com ele, quando colaram à sua roupa sem que visse um selo do rival Fernando Haddad, passou a ser cobrado por isso.

Alinhado historicamente com o PSDB de Mário Covas, diz que o momento é de silêncio. “Está tudo muito confuso e estou muito mais cético. Bolsonaro mostra um desprezo com pastas fundamentais e deixa de cuidar de muitas coisas importantes.” Vivendo em um mundo tão árido à sua natureza coletiva, resigna-se recebendo e enviando áudios e fotos aos amigos. Se não tivesse um álbum a lançar até o final do ano, poderia viver da colheita de todas as efemérides que deixou pelo caminho.

Fagner: o atacante que desafiou Mané Garrincha no último jogo do craque

Fagner diz que o que vale são os discos e que qualquer contagem a respeito de suas vitórias deve iniciar em 1973, quando seu primeiro LP foi lançado. Sim, estava mesmo tudo lá, o Fagner ibérico e o romântico, o do rock e do sertão. Ele só tinha 21 anos, e já havia criado uma linguagem particular, descolada de tudo o que se ouvia no “Sul” e evoluída de tudo o que se fazia no “Norte”.

Uma coleção de canções que já vinha fazendo história desde pelo menos 1971, há 50 anos, quando muitas delas começaram a ganhar vida. Último Pau de Arara, Penas do Tiê, Moto 1, Mucuripe, Canteiros e aquela que batizaria seu primeiro disco, Manera Fru Fru, Manera. Canções que já eram clássicas antes de serem LP.

Há 50 anos, por mais que o que valha sejam os discos, Fagner participou do Festival de Música Jovem de Brasília inscrevendo algumas delas em categorias diferentes. Vamos ao resultado:

Mucuripe (Fagner e Belchior): primeiro lugar na classificação geral; Manera Fru Fru, Manera (Fagner e Ricardo Bezerra): melhor arranjo; Cavalo Ferro (também com Ricardo Bezerra): prêmio especial do júri; Fagner: melhor intérprete por Manera Fru Fru, Manera.

Muitos anos vividos por “pessoas normais” caberiam naquele 1971 vivido por Raimundo Fagner. Da Universidade Federal de Brasília, para onde seguiu bem jovem, do Ceará, foi parar no Rio de Janeiro e, lá, chegava com um poder de magnetismo impressionante. Estar ao lado de Fagner era saber que algo de diferente poderia acontecer a qualquer instante.

Num dia, ele estava na casa de Chacrinha, noutro, de Ronaldo Bôscoli. Belchior, amigo cearense que morava com ele no Rio, já andava avexado. Afinal, por que é que o mundo só queria saber de Fagner?

Elis Regina adorou as músicas que ele lhe mostrou e o levou a um jantar com o marido Bôscoli. Mas Fagner, que não tinha dinheiro nem para a condução, preferia não pedir nada ao garçom com medo da conta. Ao final do jantar, Bôscoli ofereceu carona e o levou ao prédio onde vivia, uma espelunca de partir o coração.

Bôscoli escondeu-se atrás de um poste e observou onde o cearense entrava. Chocado com a miséria, decidiu convidá-lo para morar na mansão do casal, na Avenida Niemeyer, com frente para o Atlântico. Fagner vivendo com Ronaldo Bôscoli e Elis, e servindo de babá quando os dois precisavam de alguém para cuidar do pequeno João Marcello. Assim que as brigas começavam e o primeiro copo voava, ele pegava João e partia para um outro canto da casa.

O que tem soado como uma comemoração das cinco décadas de uma carreira que jogou em várias posições da MPB até ser convertida em uma potência de hits românticos e começar a vender mais de um milhão de LPs nos anos 1980 é um álbum que leva tudo de volta às origens de Orós, no interior do Ceará, que o tem como um filho afetivo, apesar de sua terra natal ser mesmo Fortaleza.

Fagner grava pela Biscoito Fino um álbum só com as serestas cantadas por vozes da Era do Rádio que ouvia em casa por esses anos de 1950. Uma seleção com Serenata, de Silvio Caldas e Orestes Barbosa; Malandrinha, de Freire Júnior; Chão de Estrelas, de Silvio Caldas e Orestes Barbosa; As Rosas não Falam, de Cartola; e Deusa da Minha Rua, de Newton Teixeira e Jorge Faraj.

Imagine que um dia o mundo teve meninos que ouviam Silvio Caldas e Cartola. E mais: Serenata do Adeus, de Vinicius de Moraes; Rosa, de Pixinguinha e Otávio de Souza; Maringá, de Joubert de Carvalho; Valsinha, de Chico Buarque e Vinicius de Moraes; Noite Cheia de Estrelas, de Cândido das Neves; Lábios que Beijei, de J. Cascata e Leonel Azevedo; e sua maior seresta, Mucuripe, feita com Belchior.

Mas, antes de ser embalado pelas valsas que vinham do rádio ou pelas canções que via o irmão mais velho fazer depois de atravessar a rua com um violão nas mãos em Orós e chamar ao portão o vizinho de frente, Evaldo Gouveia, Fagner ouvia a voz do pai. Seu Youssef Fares Haddad Lubous era um cantor de rádio libanês que tinha uma dor profunda no passado de Ain Bel, a 120 quilômetros de Beirute.

Seu pai, avô de Fagner, terminou fuzilado diante de seus olhos, vítima civil de uma guerra de rivalidades étnicas e religiosas que fizeram desembarcar no Brasil para não morrer também. As cenas foram tão terríveis que seu Youssef acordou a si mesmo e a casa aos gritos e suores por muitas madrugadas.

As origens do canto de Fagner começam aí. “Meu pai passava o dia cantando comigo no colo.” Uma cena comum se não trouxesse ao menino cearense uma musicalidade pronta para conversar nas mesmas tonalidades com o mundo que o rodeava.

A voz de um árabe tem modos e intervalos de semitons que o baião criado por Seu Luiz, Luiz Gonzaga, tem também. E que definiram o sentimento musical não só do mundo árabe e de muitos países africanos por onde eles se espalharam, mas também de toda a Península Ibérica. Os fados e os flamencos não existiriam sem os mouros.

A voz de um árabe triste, então, pode ser devastadora. Quando Fagner abriu a boca para cantar Mucuripe, ela já tinha os carinhos em escala menor harmônica do pai libanês e os modos mixolídios agrestes da mãe cearense. Aí, a terra tremeu. “Ele tinha aquela voz árabe incrível”, lembra Ney Matogrosso, que gravou um compacto com Fagner em 1975, um ano depois de sair do grupo Secos & Molhados.

Assim, mais do que os discos mais vendáveis de Fagner dos anos 1980 e 1990, o álbum Traduzir-se, que o fez encontrar justamente muitas dessas raízes na Espanha, onde o gravou sem nenhuma orientação pop, trata-se de um de seus trabalhos mais significativos. “É o que eu mais gosto”, diz.

Traduzir-se é de 1981 – outra efeméride – e traz Fagner cantando a música que fez para os versos da poeta portuguesa Florbela Espanca, Fanatismo; Años, do cubano Pablo Milanés, ao lado da argentina Mercedes Sosa; e La Leyenda del Tiempo, um flamenco em dueto com o espetacular cantor espanhol Camarón de la Isla, morto em 1992 e enterrado sob uma das maiores comoções por um ídolo da música na Espanha.

Mesmo longe do que se fazia no Brasil para tocar em rádio, o álbum vendeu 250 mil cópias e foi bem mesmo em países da Europa e da América Latina. “Essa aventura é inesquecível, nunca houve nada igual. A MPB sempre virou as costas para a América Latina, como diria João Cabral de Melo Neto. Essa é a nossa identidade”, diz hoje.

E ainda, sem querer cravar outra efeméride, é de 1991 o álbum Pedras que Cantam, de um outro Fagner, o mais romântico e radiofônico de todos e o que entoa Borbulhas de Amor, uma versão do dominicano de Santo Domingo, logo ibérico e, por que não, também árabe, a lenda das bachatas Juan Luis Guerra.

Jogando bola

O futebol faz um ponto de intersecção importante na vida de Fagner e ele, então, se esquece do sangue árabe para se tornar um jogador tipicamente brasileiro. E joga muito, desde sua primeira entrada no time da gravadora Philips, no Campo do Zincão, para o qual foi levado por Chico Buarque para marcar quem? Cafuringa, o ponta-direita do Fluminense campeão em 1969, 1971, 1973 e 1975. Mas vai e marca tão bem que Cafu, que também treinava a equipe dos artistas, se empolga e o nomeia capitão no próximo jogo. Observado por um olheiro do Cosmos de Pelé, recebe um convite e nega. Outro olheiro o quer levar para o Campo Grande. Na maior de suas partidas, no centro de um Maracanã de anéis e geral lotados por mais de 200 mil pessoas, Fagner joga no time dos artistas contra a equipe da Agap, a Associação de Garantia ao Atleta Profissional, no jogo de despedida de Mané Garrincha em 1984, um ano antes de sua morte.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.