Foi confuso e envergonhado o voto do ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin no julgamento sobre a constitucionalidade do inquérito das fake news, que começou ontem. Fachin é o relator da ação. Todos os outros ministros ainda têm de ser ouvidos. Se o padrão dos votos for o mesmo, o tribunal não terá muito do que se orgulhar no final.

A questão central deste caso é: o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, podia determinar a abertura de um inquérito sobre fake news e agressões digitais contra a corte, designando um colega para presidi-lo, o ministro Alexandre de Moraes, sem envolver o Ministério Público desde o início? A participação do Ministério Público é a regra em ações penais no nosso sistema jurídico. Trata-se de justificar uma exceção instituída por Toffoli.

Eu acho a exceção abominável. Ela amplia o raio de ação do STF numa direção ruim: faz com que o tribunal, a quem compete julgar, também exerça tarefas de um órgão de acusação. E por quê? Para que o Supremo possa segurar sozinho as rédeas da investigação que lhe interessa. Isso indica desconfiança em relação às instituições vizinhas, especialmente o Ministério Público.

Sim, há gente querendo destroçar a ordem democrática no país. Mas o Supremo não ajuda ao adotar caminhos heterodoxos, como neste caso. Pelo contrário, contribuiu para que o Brasil se transforme cada vez mais na república dos paranóicos.

Essa é uma objeção política, de princípios. Não significa que o inquérito do Supremo seja ilegal. Fachin assegura que o inquérito está, sim, dentro da lei, e não tenho currículo para entrar numa disputa jurídica com um ministro do STF. Ainda assim, é perceptível o caráter “acochambratório” da sua manifestação.

Ele convalida os atos realizados até agora, mas também impõe limites ao inquérito: diz que são obrigatórios o acompanhamento de todos os procedimentos pelo Ministério Público e a observância da súmula 14 do próprio STF, que garante o acesso ao processo pelos investigados.

Vamos combinar: não deveria ser necessário que um ministro do Supremo fizesse esse tipo de recomendação a outros ministros do Supremo.

Na outra metade do voto, Fachin discute se as fake news contra o Supremo podem ser coibidas ou estão cobertas pela liberdade de expressão. Também aqui ele não parece totalmente à vontade. Mais uma vez, procura legitimar e ao mesmo tempo limitar a investigação.

Sua posição, em resumo, é que se deve combater ameaças diretas ao Supremo, aos ministros e seus familiares, e também esquemas clandestinos de financiamento e divulgação de mensagens em massa nas redes sociais.

Segundo Fachin, todo o resto – matérias jornalísticas, postagens, compartilhamentos e outras manifestações na internet, anônimas ou não – fica protegido pelos direitos de livre expressão e de imprensa.

A menção às matérias jornalísticas tem razão de ser. Houve um abuso logo no começo do inquérito. A revista digital Crusoé foi obrigada a tirar do ar uma reportagem sobre menções ao ministro Dias Toffoli em documentos da construtora Odebrecht, enrolada no Petrolão.  Quando ficou demonstrado que a matéria se amparava em documentos, a censura caiu. Feio. Mas Fachin deixou a crítica nas entrelinhas.

Também é muito confusa sua argumentação para justificar que mensagens que contenham ameaças ao STF são crime. Há um jeito muito fácil de fazer isso: invocar a Lei de Segurança Nacional de 1983. Ela criminaliza ameaça ao Estado de Direito e ao livre exercício de qualquer dos Poderes da União. No entanto, ministros como Fachin, Barroso e Lewandowski não gostam de citar essa lei, que é herança do regime militar. Já opinaram que ela foi invalidada pela Constituição de 1988. Com isso, Fachin tem de fazer contorcionismos para ancorar seu raciocínio na lei.

Essas são minhas pinimbas com o voto do ministro.

Dito isso, decisão do Supremo não depende de boniteza para valer. Fachin desempenhou seu trabalho: fundamentou sua manifestação em 53 páginas de análise das leis, recheadas de citações a precedentes e doutrina. Seus colegas farão o mesmo. Chegarão ao um veredito e, se as partes não gostarem, poderão recorrer. Mas esgotados os recursos, mesmo que não gostem do resultado, como eu não gostei do voto de Fachin, terão de se submeter a ela. Ponto final.

Tribunais constitucionais não existem para revelar verdades eternas. Jamais vão promulgar sentenças capazes de agradar a todos. Nos casos mais complicados, suas decisões nem sequer encerram os conflitos sociais subjacentes.

Nos Estados Unidos, por exemplo, a decisão da Suprema Corte que delegou aos Estados a tarefa de legislar sobre aborto ocorreu em 1973, e vem sendo combatida desde então. Mas os americanos anti-aborto entendem que a democracia é o regime da paciência. Sonham com o dia em que uma maioria de juízes que pensa como eles vai se formar na corte, estabelecendo uma nova interpretação da constituição que, quem sabe, também possa prevalecer por muitas décadas. Não sonham com milícias que vão matar ou prender os juízes.

Discordar do Supremo, ok. Desacatá-lo, jamais.