O País voltou sua atenção na quarta-feira para as comemorações do Bicentenário da Independência, uma efeméride aguardada para refletir sobre o passado, celebrar as conquistas nacionais e lançar um olhar sobre o futuro. Mas o presidente subverteu o Sete de Setembro e o transformou em puro espetáculo eleitoral, no dia “do confronto final” para reverter sua desvantagem nas pesquisas e tentar sair do isolamento. Foi uma demonstração de força promovida com o uso da máquina pública que não deverá mudar sua situação.

DIEGO O estudante de pré-vestibular de 22 anos não informou o nome completo por “medo de perseguição da esquerda”. Sobre a baixa adesão de jovens na av. Paulista, respondeu que “eles são doutrinados nas universidades, e eu não me deixo manipular” (Crédito:Divulgação)

A desfaçatez começou no início do dia com declarações do presidente à TV Brasil, empresa pública que se tornou canal de propaganda oficial apesar de ser bancada com o dinheiro dos contribuintes (R$ 400 milhões por ano) e contar com quase 2 mil servidores, dando traço de audiência. Em uma entrevista chapa-branca, ele associou o patriotismo ao seu governo e confundiu marotamente os apoiadores que se reuniram para apoiar sua candidatura com a população que foi participar de um evento cívico-militar. O presidente considera que é o guia da Nação e que a estrutura de Estado está à disposição do seu grupo político.

Por isso, não participaram do desfile militar os chefes dos outros Poderes: Rodrigo Pacheco e Arthur Lira, presidentes do Senado e da Câmara, e Luiz Fux, presidente do STF. Foi uma ausência prudente. O evento oficial foi marcado pela exaltação do agro, do “homeschooling cristão” e das escolas cívico-militares. O mandatário reservou um lugar de honra no palanque das autoridades para Luciano Hang, empresário investigado no STF no inquérito dos atos antidemocráticos, enquanto dava as costas para o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa. Vinte e oito tratores enviados por produtores rurais participaram da parada, atestando que o setor virou peça-chave por ser um dos poucos em que o governo se destaca.

Depois que passaram os tanques, soldados e as máquinas agrárias, o presidente se dirigiu ao palanque montado por aliados na Esplanada dos Ministérios. Tentou seguir a orientação de seus aliados do Centrão para moderar o tom, buscando evitar a rejeição, que alcança 49% do eleitorado, segundo o instituto Ipec (ex-Ibope). Seria um cavalo de pau em relação à festa de 2021, quando criou uma crise institucional ao afirmar que não acataria mais decisões do Supremo e chamar o ministro Alexandre de Moraes de “canalha”. Dessa vez, voltou a ameaçar a Corte, dizendo que o povo iria “trazer para as quatro linhas da Constituição os que ousam ficar fora dela”.

TENSÃO Na av. Paulista, crítica às urnas, ao Congresso e ao STF. Em Brasília (abaixo.), Bolsonaro e o empresário Luciano Hang. Mais abaixo, protesto em Curitiba (Crédito:Divulgação)
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O discurso beligerante foi alimentado nos últimos dias por aliados do mandatário, como Roberto Jefferson, presidente do PTB que está em prisão domiciliar, e o blogueiro Allan dos Santos, foragido nos EUA. Ambos se dirigiram aos apoiadores convocando para os atos e pregando o enfrentamento à Justiça. Na véspera, também houve a ameaça da entrada de caminhões, que estavam proibidos de circular. No ano passado, eles furaram o bloqueio ameaçando invadir o STF. Na Esplanada dos Ministérios, os extremistas, inspirados em 1964, esqueceram os problemas reais do País para abraçar a falsa retórica da “ameaça de um regime comunista”. Não faltaram demonstrações de devoção e fanatismo. Para a militância, o capitão é o “único capaz de enfrentar o sistema”, ainda que esteja ao lado do Centrão, grupo fisiológico que é sinônimo da velha política. No mundo fictício dos manifestantes, o STF e o Congresso, classificados como arqui-inimigos do povo, estão mancomunados com o PT. Para evitar o suposto acordão e a vitória de Lula nas urnas, vale de tudo: até golpe de Estado. O roteiro, que parece ter sido tirado dos grupos de WhatsApp de Bolsonaro, é o que deu a tônica. Tudo foi dito às claras, sem meias palavras.

Alguns dos gritos entoados nos protestos seguem a tática: “Ei, Datafolha, olha eu aqui”, bradavam. Para eles, uma derrota de Bolsonaro não passaria de fraude. Embora o evento de Brasília tenha contado com militantes de todas as áreas, o agro destacou-se pela presença em peso. Não prestou apoio a Bolsonaro somente com a presença de representantes. O Movimento Brasil Verde e Amarelo, formado por entidades e empresários do setor, bancou os três trios elétricos posicionados na Esplanada. O mesmo grupo pagou centenas de outdoors espalhados pela capital com a convocação da população. Entre as lideranças evangélicas, Silas Malafaia, aliado de primeira hora do Planalto, foi o que acumulou o maior número de menções nas redes sociais, de acordo com monitoramento da Casa Galileia. “Pastores e lideranças têm acionado sua autoridade religiosa para profetizar e construir narrativas de uma nação ameaçada pelo perigo comunista que está à espreita, e que Bolsonaro, apesar de não ser a melhor alternativa, é a única possível para livrar o país do pior”, analisa a entidade.

Além de mobilizar fiéis nas redes, Malafaia pagou pelo trio elétrico em que Bolsonaro discursou na praia de Copacabana, no Rio, o único local em que se pronunciou depois de Brasília. “Não sou muito bem educado, falo palavrões, mas não sou ladrão”, disse do palanque aos apoiadores, em referência a Lula. Também se apropriou da festa cívica, numa iniciativa com todos os contornos de um crime eleitoral. Todo o aparato militar mostrado no evento, montado sob o pretexto de comemorar a Independência — aviões da Esquadrilha da Fumaça, exibição do pelotão de paraquedistas, parada naval, salva de tiros, guindastes gigantes que hasteavam bandeiras do Brasil — acabou servindo apenas para anabolizar a manifestação política a favor do presidente que começou de manhã cedo e durou cerca de nove horas. Enrustido no manto do civismo, ele fez campanha de maneira descarada e pouco se lixou para o Bicentenário, animando os novos radicais. Foi a mesma atitude que tiveram todos os políticos conservadores do Rio, o que explica a ocupação das ruas. Na sua jornada carioca, o que Bolsonaro pregou o tempo inteiro foi um patriotismo que se resume a demonizar a esquerda e a imprensa que não o apoia.

A prova dessa vontade incontida no Rio foi a convocação como mestre de cerimônias de seu comício do locutor de rodeios de Barretos (SP) Cuiabano Lima, que fez um discurso de exaltação messiânica do mandatário, enquanto os aviões soltavam fumaça com as cores da bandeira. Foi uma propaganda política com o total aval dos militares. Nos carros de som espalhados pela Avenida Atlântica tocava mais o jingle de Bolsonaro e outras músicas de campanha do que o Hino da Independência. Também era ouvida sem parar a música “Eu te amo, meu Brasil”, de Dom e Ravel, hit da ditadura militar. Nas ruas, grupos religiosos e políticos promoveram suas pautas de costumes. Havia monarquistas e também um carro de som com faixa do movimento Vista Pátria ou da União dos Movimentos Conservadores, que entre outras bandeiras reivindicam intervenções ideológicas nas universidades federais e a volta da monarquia. O anticomunismo foi a mola propulsora da ação, e o único vermelho tolerado era o da camisa do Flamengo. Também havia menções à Nicarágua, onde os aliados do presidente identificam um exemplo do que pode acontecer com o Brasil se Lula virar presidente. Em clima de quase desespero, manifestantes diziam que “não se bate carteira em comício de direita” e “só esquerdista rouba”.

Bolsonaro chegou à orla às 15h35, depois de participar de uma cerimônia militar com autoridades no Forte de Copacabana, a menos de um quilômetro. O pastor Malafaia era figura de proa no palanque, assim como o filho 01, Flávio, o deputado Daniel Silveira e novamente o empresário Luciano Hang, que se tornou um símbolo da alegria bolsonarista, além do deputado Sóstenes Cavalcanti, líder da bancada evangélica na Câmara. Sóstenes atacou o STF, assim como Cuiabano e a totalidade do público do evento, que considera o tribunal hoje uma ameaça. Esse novos radicais são conservadores, glorificam o presidente, se regozijam com sua pauta moral e têm uma ideia enviesada do Estado de Direito. Quem foi na manifestação em Copacabana estava mais interessado em apoiar Bolsonaro do que em festejar a Independência. É um grupo que realmente duvida do bom funcionamento das urnas eletrônicas e cultua a personalidade do presidente, mas não tem a mínima preocupação com a desigualdade social e trata os direitos humanos com desdém.

O mesmo clima predominou em São Paulo, onde vários carros de som ocuparam a avenida Paulista. Na altura do Masp, a concentração de pessoas por metro quadrado era tão grande que não era possível passar. Algumas bandeiras de Israel tremulavam ao lado de bandeiras do Brasil que os ambulantes exibiam em varais improvisados. Pessoas seguravam cartazes, muitos deles em inglês, pedindo “liberdade”, inclusive religiosa, e “voto impresso auditável”, defendendo “valores”, “família” e o porte de armas para “defesa pessoal” e atacando o STF, o comunismo e a “ideologia de gênero nas escolas”. Em um deles se lia que Bolsonaro deveria acionar as Forças Armadas para a “prisão de comunistas, narcotraficantes e traidores da nação” e pedia ainda uma nova Constituição “anticomunista”.

A ex-deputada federal Cristiane Brasil, filha de Roberto Jefferson, discursou em cima do trio elétrico do movimento Revoltados Online. Numa provocação a Alexandre de Moraes, puxava o coro de “Ei, Xandão, vai tomar no …”, deixando de pronunciar a última palavra. “Somos escravos de um único homem careca, cabeça de ovo”, disse. “Não tenho medo de você. Vai me prender também, otário?”, exaltou-se. Ela também aproveitou para chamar o conjunto de ministros do STF de “cachorros adestrados pela esquerda”. Um dos trios na avenida era do Movimento Monarquista. Mais adiante, sobre outro trio elétrico, um alegado cubano foi chamado a “dar um testemunho” sobre sua experiência num país comunista. Em outro ponto da avenida, do mesmo trio elétrico em que estava o advogado Frederick Wassef, aquele que abrigou Fabrício Queiroz em seu sítio em Atibaia, o deputado federal Marco Feliciano assumiu o microfone e puxou uma oração: “Senhor, levanta uma muralha de foto em torno de Brasília e dos conservadores, Senhor”.

O ex-ministro Ricardo Salles também discursou: “200 anos depois da Independência, temos hoje um líder que pensa no povo”. Em seguida, puxou o Hino da Independência e foi acompanhado pela multidão. Em outro ponto da avenida, o ex-presidente da Fundação Palmares , Sérgio Camargo, defendeu “liberdade, prosperidade e respeito a nossas crenças religiosas”. Disse não desejar que o “nove dedos” retorne ao poder. Muita gente chegou ao local em ônibus fretados, e após as 16 horas muitos deixavam o local ao mesmo tempo. Era o início do horário da partida das “caravanas” rumo às cidades de origem. Duas pessoas que não quiseram se identificar afirmaram terem vindo “de graça” de Cotia em um ônibus colocado à disposição de quem quisesse participar da manifestação.

CONTRA O STF Na avenida Paulista, manifestantes criticam o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, que preside o TSE e está à frente de inquéritos contra milícias digitais. Abaixo, uma faixa defende a intervenção militar (Crédito:Divulgação)

As manifestações foram expressivas, mas não superaram os Sete de Setembro do ano passado. Em Brasília, o mestre de cerimônias chegou a anunciar que havia 100 mil pessoas, mas um militar, captado pelas câmaras, lhe soprou no ouvido para corrigir o número. A cifra virou então “1 milhão” de manifestantes. Em São Paulo, o governo estadual estima que compareceram 50 mil, contra 125 mil em 2021. A três semanas das eleições, Bolsonaro usou os atos para deslegitimar os resultados de pesquisas de opinião, que apontam Lula na dianteira. E, depois de rasgar a lei eleitoral (com o apoio da oposição) criando benefícios eleitoreiros na véspera do pleito, também usou a data cívica para turbinar seus votos nas urnas. A confusão entre ato cívico-militar e comício eleitoral foi evidente. Em Brasília, o Ministério Público Federal já instaurou um inquérito para apurar o uso dos desfiles como atos político-partidários (a festa oficial do Bicentenário na cidade custou 3,3 milhões de reais, 247% superior a 2019). Também será investigado se os servidores dos ministérios foram coagidos a participar do evento. A questão será certamente judicializada. Nos bastidores, ministros do TSE dizem que não quiseram se manifestar publicamente diante do evidente abuso da máquina pública durante o feriado porque esperam que partidos de oposição entrem com ações para punir o presidente. A avaliação na corte, no momento, é que não há espaço para cassar a chapa presidencial, pois isso causaria uma comoção política, mas eventuais punições podem se dar por meio de multas.

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Joao Castellano

Procuradores afirmam à ISTOÉ, sob reserva, que existem elementos suficientes para que a Procuradoria-Geral Eleitoral, assim como partidos, ajuíze uma ação de investigação pelo abuso de poder econômico e político e pela utilização indevida de meios de comunicação. “No Rio, o desfile usualmente ocorria na Avenida Presidente Vargas. Ele mudou toda a programação para ficar próximo da militância e tornar aquilo num ato de campanha”, apontou um subprocurador-geral da República. A suspeita de infração da lei eleitoral já foi comunicada pela PRE-RJ ao vice-PGE, Paulo Gonet, segundo apurou ISTOÉ. O PT é um dos partidos que deve acionar a Justiça. “Em virtude do cargo, o presidente teve a condição de usar a estrutura e a verba do Estado para transformar um evento cívico-militar, em um feriado, num comício. Então, além de ter se apoderado do evento, ele abusou do poder político e econômico”, diz o advogado Marco Aurélio de Carvalho, integrante do grupo Prerrogativas. A coordenação jurídica da campanha acionará o TSE. No Congresso, uma sessão com autoridades para lembrar o Bicentenário na quinta-feira foi marcada pela ausência do presidente e demonstrou na prática como o chefe do Executivo está na contramão das instituições. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, lembrou que daqui a menos de um mês os brasileiros vão às urnas. “O amplo direito de voto não pode ser exercido com desrespeito, em meio ao discurso de ódio, com violência ou intolerância em face dos desiguais”, disse.

Depois de transmitir o discurso de Bolsonaro a apoiadores em Brasília, emissoras de TV deixaram de veicular seu discurso no Rio. Bolsonaro já havia conseguido na prática usar o Sete de Setembro para fazer propaganda da sua candidatura, ferindo a isonomia que deve ser seguida para todos os candidatos. Não conseguiu repetir a estratégia em Copacabana. A GloboNews, por exemplo, ofereceu aos outros presidenciáveis 10 minutos para se manifestarem também. Isso não compensa o fato de que o presidente mais uma vez mostrou seu desprezo pela lei e pelo jogo democrático. Usou a boa fé da população na comemoração de um evento solene para seu projeto político pessoal. Utilizou o aparato militar como coreografia para sua campanha eleitoral. Pior, vilipendiou um momento de reflexão coletivo para seu propósito particular. Não faltaram personagens que tentaram sequestrar o futuro do País para seus projetos autocráticos, como a memória da história ilustra no Bicentenário. Mas todos foram atropelados pela marcha do tempo e relegados a um pé de página nos livros, como certamente acontecerá com o atual ocupante do Planalto.

João Batista Vieira

Wenderson Araujo

O servidor de 58 anos avalia que “o STF está acabando com o País” por meio de decisões que esvaziam atos do Planalto, como os decretos das armas. “Se ministros criarem leis ou punições que não existem para tirar Bolsonaro da jogada, apoio a volta das Forças Armadas. Se não é Bolsonaro, melhor os militares”

Valter Reis
O aposentado de 82 anos, de Mogi das Cruzes, explicou em São Paulo que foi à manifestação para “lutar pelos filhos e netos” e protestar contra o STF. “Estão prendendo injustamente quem se manifesta contra.” Relatou ainda temer o comunismo e mencionou que em países como Cuba e Venezuela “a população sofreu lavagem cerebral para idolatrar assassinos”

João Paulo Guedes
Em frente ao carro de som do Movimento Monarquista na avenida Paulista, em São Paulo, o chanceler do Círculo Monárquico explicou que o grupo “defende as causas dos brasileiros” e que a presença de monarquistas no local “não é um manifesto pró-Bolsonaro”. Para ele, a República não deu certo. “Defendemos a monarquia e queremos difundir nossas ideias”

Antônio Raimundo Bezerra

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O professor aposentado de 68 anos, de Pompeia (SP), se emocionou ao falar sobre o motivo de sua presença. “Acredito que possamos ter um País melhor para todos, livre do comunismo, dos corruptos, de políticos que só legislam em causa própria”, explicou. Ele é contra o fechamento do STF, mas defendeu a “meritocracia” para o ingresso na Corte

Angelito Noretti

Caio Guatelli

Aposentado e evangélico, de 63 anos, foi a Copacabana defender o presidente. “A esquerda quer que a criança escolha o sexo com cinco anos. Se está todo mundo contra Bolsonaro é porque ele faz alguma coisa certa”, diz. “Se tivessem tomado ivermectina, 250 mil pessoas poderiam ter sido salvas na pandemia”

Wesley Fonseca Brito
O oficial da Marinha de 42 anos disse em Copacabana que a maior ameaça à democracia é o STF. “Estou aqui pelos dois motivos: o Sete de Setembro e Bolsonaro. Com Bolsonaro a democracia não corre risco, mas com o Lula, sim. As eleições são justas, mas deveria haver mais transparência das urnas e voto impresso”

Déa Azevedo
“Eu tenho uma visão: a esquerda quer trazer algo de fora para implantar no Brasil, mas Bolsonaro quebrou essa corrente”, disse a funcionária pública no Rio. “Nós tivemos por 30 anos um partido só e agora precisamos reeleger ele para limpar tudo. Desconfio das urnas, já que a gente não tem a garantia do voto impresso”