É possível dizer que a carreira da arquiteta e designer Lina Bo Bardi (1914-1992) tem dois tempos distintos: o da criação do Masp na rua 7 de Abril, em 1947, e o da inauguração da sede definitiva do museu na avenida Paulista, em 1968. No primeiro momento, buscou uma linguagem concisa e limpa, típica do modernismo bauhausiano. Em 1968, já mais brasileira que italiana e apaixonada pela cultura popular, que descobriu na Bahia, nos anos 1950, resolveu promover, segundo o diretor artístico do Masp, Adriano Pedrosa, “um gesto radical de descolonização”, ao inaugurar o novo museu na avenida Paulista, templo da arte europeia, com a exposição A Mão do Povo Brasileiro. A mostra temporária inaugural do prédio, em 1969, foi um marco, que hoje Pedrosa e os curadores Tomás Toledo e Julieta González reeditam.

Com quase mil objetos produzidos por artistas do povo, a remontagem da exposição, que reproduz o quanto possível a original, de 1969, foi inaugurada na quinta, 1.º, e segue aberta até janeiro, oferecendo ao público um panorama da arte de várias regiões do Brasil. A mostra cobre um amplo período histórico – desde uma roda de carro de boi, de 1876, até a produção do século 20, incluindo aí telas de Agostinho Batista de Freitas (1927-1997) e José Antonio da Silva, (1909-1996), entre outros pintores injustamente chamados de primitivos.

Diálogo

Na mostra original, Lina Bo Bardi foi auxiliada na tarefa pelo marido, Pietro Maria Bardi, (1900-1999), então diretor do Masp, o cineasta baiano Glauber Rocha (1939-1981) e o diretor de teatro pernambucano Martim Gonçalves (1919-1973). Em sua nova montagem, a mostra ganha uma expografia próxima da original, mas com o acréscimo de vitrines e objetos – entre eles peças de cerâmica do pernambucano Mestre Vitalino (1909-1963)), carrancas do São Francisco, esculturas de madeira do baiano Agnaldo dos Santos (1926-1962), utilitários indígenas da coleção de Mário de Andrade, ex-votos, brinquedos, objetos religiosos, maquinários, ferramentas, instrumentos musicais, móveis antigos e obras de grande porte, como um São Jorge articulado que recebe os visitantes logo à entrada da exposição.

O diretor artístico do Masp, Adriano Pedrosa, classifica a “reencenação” de A Mão do Povo Brasileiro como a mais importante iniciativa de seus dois anos de gestão. Embora seja impossível uma reconstrução perfeita – o Masp só tem em seu acervo 55 peças das mil expostas -, a mostra dialoga com outras exposições em cartaz no Masp, entre elas a de Portinari, que buscou se aproximar da cultura popular e indígena, pintando temas relacionados às obras marajoaras.

O curador Tomás Toledo, nesse sentido, destaca o cruzamento híbrido de culturas nas esculturas do baiano Agnaldo dos Santos, que nasceu em Itaparica e morreu jovem, aos 35 anos. Agnaldo foi aprendiz de Mário Cravo Jr. e esculpia peças de madeira com figuras divinizadas nos cultos cristãos e africanos. Toledo destaca ainda as esculturas do carioca Mudinho (1906-1987), ou Manoel Ribeiro da Costa, que o Museu de Ingá emprestou para a mostra.

Além de museus, muitos colecionadores particulares cederam obras para a exposição. O interesse por trabalhos de artistas fora do circuito erudito cresceu e, hoje, segundo Adriano Pedrosa, é possível atestar a ressonância da produção popular na arte de contemporâneos. “Os trabalhos de Rivane Neuenschwander, que fazem referência a ex-votos, as obras de Ivan Grillo e as peças de Marepe são provas desse diálogo”, diz, lembrando ainda que um dos nomes mais respeitados do movimento neoconcreto, Lygia Pape, foi pioneira ao reconhecer a arte dos ceramistas do vale do Jequitinhonha.

Sobre a artista carioca, a curadora Julieta González lembra que será exibido na mostra um curta que trata dessa relação, A Mão do Povo (1975), documentário de Pape sobre o crepúsculo das tradições artesanais, tema que preocupava especialmente Lina Bo Bardi, empenhada em repensar o design a partir da invenção e improvisação do povo brasileiro. Durante o período de exibição da mostra serão exibidos filmes sobre questões sociais relacionadas às culturas marginalizadas, como a sertaneja e a de origem africana. No ciclo organizado pela curadora estão filmes de Glauber Rocha (Deus e o Diabo na Terra do Sol) e Cacá Diegues (Ganga Zumba).

Antes de A Mão do Povo Brasileiro, Lina organizou a mostra Nordeste, em 1963, que inaugurou o Museu de Arte Popular no Solar do Unhão, construção do século 16 que ficou tomada por objetos construídos por restos da civilização (lâmpadas queimadas que viravam lamparinas, colchas feitas de retalhos de tecidos). A mostra foi depois cancelada pela embaixada brasileira em Roma, quando os militares tomaram o poder. O crítico e arquiteto italiano Bruno Zevi teria dito: “A arte dos pobres dá medo aos generais”.

A MÃO DO POVO BRASILEIRO

Masp. Avenida Paulista, 1.578,

tel. (11) 3149-5959. 3ª a dom., 10h/18h. Ingresso: R$ 25

(3ª, grátis). Até 29/1/2017

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.