Pelos lados da Mooca e do Belenzinho, na zona Leste de São Paulo, há centenas de moradores de rua andando com bermudas estampadas de surfista. Não se trata de uma moda dos desafortunados ou apenas de uma coincidência. A explicação para essa mudança generalizada no vestuário está numa iniciativa do padre Julio Lancellotti, de 71 anos, que recebeu uma doação de R$ 19 mil para a Paróquia de São Miguel Arcanjo e gastou em roupas para distribuir para as pessoas em situação de rua. São roupas novas e com diferentes opções de estampa. “Poder escolher é um ato de humanização”, diz o padre. “Só dar alimentos não resolve nada, é preciso dar opção”.

TRABALHO O padre empurra um carrinho cheio de alimentos e roupas para distribuir no café da manhã no centro comunitário: opções de escolha (Crédito:Gabriel Reis)

Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua da arquidiocese paulistana, é um dos grandes benfeitores da cidade e uma prova viva de que existe amor em São Paulo, inclusive por ser vítima persistente de ataques de ódio e ofensas desmedidas. Há pessoas que não se conformam com seu esforço assistencialista e o chamam de “defensor de nóias” ou de “cafetão da miséria”. Mas o fato é que seu trabalho funciona muito bem e ao longo de 35 anos de atuação na paróquia, ele ajudou milhões de pessoas e traz cotidianamente conforto e benefícios para a parte mais marginalizada da sociedade. Todos os dias, ele oferece alimentos e outros gêneros de primeira necessidade, sempre pensando além do básico, para uma enorme população desamparada que circula na região. Sua atuação em prol dos pobres é tão marcante e efetiva que, sábado 10, ele recebeu um telefonema de apoio do Papa Francisco, para quem manda cartas com regularidade. “Tive certeza de que eu e o papa estamos na mesma sintonia de luta contra a pobreza”, diz o padre.

Durante a pandemia, a rotina de Lancellotti tem sido mais intensa do que de costume. A procura por seus serviços assistenciais e doações aumentou, assim como a presença de moradores nas ruas da cidade. Sua atividade diária começa pela manhã, às 7 horas, quando ele reza uma missa empolgante na igreja de São Miguel Arcanjo, e, por volta das 8 horas, se dirige, empurrando um carrinho de supermercado com alimentos pela rua, ao Centro Comunitário São Martinho de Lima, a cerca de 500 metros. Lá ele comanda a distribuição de um café da manhã reforçado e cheio de guloseimas para moradores de rua. Quando chega, o padre é recebido com alegria e tratado como amigo. Na quarta-feira 14, cerca de 400 pessoas passaram por ali, muitas com bermudas novas. Além de comida, houve distribuição de cuecas e calcinhas, sempre com opções de estampas e cores.

“Ontem à noite, consegui ligar para um padre italiano idoso, missionário da juventude no Brasil, mas sempre trabalhando com os excluídos, com os pobres”, disse o papa em um discurso no Vaticano, referindo-se à conversa telefônica que teve com Lancellotti. ″[Ele] vive aquela velhice em paz: consumiu a sua vida com os pobres. Esta é a nossa Mãe Igreja, este é o mensageiro de Deus que vai até as encruzilhadas das estradas.”

“Ontem à noite, consegui ligar para um padre italiano idoso, missionário da juventude no Brasil, mas sempre trabalhando com os excluídos, com os pobres” – Papa Francisco (Crédito:Alberto Pizzoli / AFP)

Apesar de sua bondade, Lancellotti tem muitos desafetos. Um deles é o deputado estadual Arthur do Val, conhecido por “Mamãe Falei” e candidato a prefeito de São Paulo pelo Patriota, que iniciou uma campanha difamatória contra o padre. “O que o Padre Lancellotti faz é deplorável. A Igreja Católica tem uma linda história e não pode ficar à mercê de um cafetão da miséria. Nunca ameacei ninguém, nem ele. Ele é uma das maiores farsas do Brasil, em breve vocês saberão! Vou desmascarar esse Padre”, disse o deputado em uma postagem no Twitter. Um dia depois das ofensas de do Val, Lancellotti foi xingado na rua por um motociclista que o chamou de “padre filho da puta que defende nóia”. O padre registrou um boletim de ocorrência no 8º DP e o agressor, um professor de Muai Thai da região, está sendo investigado. “Depois de ataques de alguns candidatos à Prefeitura contra mim, estou cada vez mais em risco. Se me acontecer alguma coisa, se alguém me atingir, vocês sabem de quem é a culpa, de quem cobrar”, declarou. “Sou odiado por aqueles que querem que a sociedade continue como está”.

Mais gente na rua

A população de rua tem aumentado durante a pandemia e o padre Júlio nunca foi tão necessário. Dados do último censo realizado pela Secretaria de Assistência Social e divulgado em janeiro mostram que ela atingiu 24,3 mil pessoas no ano passado, o que representa um crescimento de 53% desde 2015. Apesar de altos, o padre considera que esses números estão subestimados e a população rua na cidade está próxima dos 50 mil. Nos últimos meses, com a crise do coronavírus, a situação só piorou . “Meu objetivo principal é conviver com eles, lutar contra o massacre a que essas pessoas estão sujeitas e buscar uma mudança na sociedade”, afirma Lancellotti. “Somos uma estrutura cristalizada em que ninguém abre mão de privilégios em prol dos mais pobres. O mais importante é conviver com as pessoas das ruas”.