Com audiência e repercussão abaixo do esperado, o remake de Vale Tudo, exibido pela TV Globo, tem provocado uma onda de estudos e reflexões nos bastidores da emissora e pode culminar em mudanças estruturais na forma como a dramaturgia é pensada, produzida e distribuída. A Coluna Matheus Baldi apurou com exclusividade que a autora da nova versão do clássico de 1988, Manuela Dias, teve sua estabilidade profissional colocada em xeque em reuniões recentes entre executivos da emissora.
Mesmo com contrato fixo com o canal até 2028, Manuela, responsável por trabalhos elogiados como a minissérie Justiça e a novela Amor de Mãe, poderá, ao fim desse período, ser inserida na política de vínculo “por obra”, modelo que já vem sendo adotado com novelistas históricos, como Gloria Perez e Aguinaldo Silva. Na leitura da minha fonte, a medida não é uma demissão, tampouco um rebaixamento oficial, mas marca uma mudança de paradigma. A estabilidade para autores começa a ser revista com lupa, especialmente diante de produtos que não entregam os resultados esperados.
Nos bastidores, um argumento muito comentado é o de que a novela está indo ao ar muito tarde, algo que um estudo feito pela emissora teria confirmado como fator importante para a expressiva perda de público dos últimos folhetins do horário das 21 horas. Ainda assim, há também quem questione o ritmo da narrativa e o tom do texto, o que alimenta conversas mais densas sobre a adaptação de obras consagradas.
Sob a liderança de José Luiz Villamarim, o departamento de dramaturgia da Globo vive um momento de inflexão. Segundo o jornalista Flavio Ricco, a emissora estuda adotar um novo sistema de seleção de novelas, no qual dois autores apresentariam sinopses distintas para um mesmo horário. Uma espécie de “banca” interna avaliaria os projetos, aprovando aquele considerado mais interessante e competitivo. O modelo já estaria sendo preparado para os próximos ciclos de planejamento do canal.
Essa “competição de ideias” surge num contexto de pressão por inovação. Após os desempenhos abaixo do esperado de Travessia, Renascer, Mania de Você e agora Vale Tudo, a emissora busca formas de calibrar sua grade para manter a liderança num ambiente em que o streaming disputa cada vez mais a atenção do público tradicional da televisão.
No caso específico de Manuela Dias, segundo minha fonte, a movimentação também prevê a possibilidade de que ela seja testada em outras faixas horárias, como as 18h ou 19h, o que pode ser muito bom para a autora, uma vez que há uma forte suspeita de que o grande “problema” realmente pode não ser o texto, mas a perda de hábito dos brasileiros em acompanhar novelas tão tarde.
Entre profissionais do meio com quem tenho conversado, há quase um consenso de que escrever uma novela das 21h virou uma missão ainda mais arriscada, com exigência por resultados imediatos e quase milagrosos.
Sem contar que escrever um remake está longe de ser uma tarefa simples. Diferente do que parte do público pode imaginar, há uma camada adicional de complexidade nesse tipo de projeto: lidar com a expectativa coletiva em torno de uma obra já consagrada, respeitar a memória afetiva do público e, ao mesmo tempo, propor uma releitura que dialogue com os novos tempos. A comparação com o original é inevitável e, muitas vezes, injusta.
Ainda assim, o talento de Manuela Dias segue sendo reconhecido dentro da emissora. Seus projetos anteriores revelam uma escritora de traço marcante, sensível aos dilemas sociais e humanos, e capaz de criar cenas memoráveis. O momento atual, apesar das tensões, também pode abrir espaço para reposicionamentos criativos e, inclusive, novas colaborações.
No pano de fundo, o que se vê é um retrato dos novos desafios da nossa teledramaturgia. Os hábitos de consumo mudaram, o tempo de atenção diminuiu e a concorrência aumentou. Nesse cenário, a Globo tenta se adaptar sem perder sua essência, e isso passa, inevitavelmente, por repensar algumas tradições.
Seja como for, o “corte inédito” que cito no título não deve ser interpretado como uma medida punitiva, mas como parte de uma engrenagem que está se reposicionando. E que, como qualquer organismo vivo, precisa de ajustes, testes e por que não, novos começos, novos formatos de acordo. Mas há um alerta importante a ser feito. Sem vínculos mais longos e com o olhar atento dos streamings para nossos talentosos autores brasileiros, não dá para negar: existe um grande risco de o canal perder o requinte de sua exclusividade. No caso de Manuela Dias, o texto é rico, bem avaliado e já teve até indicação ao Emmy Internacional. Vale pensar, repensar… Ainda há tempo.