Quem olha a fisionomia sisuda no ringue quando está em ação não imagina as lutas que Neiva Amaral já enfrentou. Aos 48 anos, ela se multiplica para suprir as obrigações de mãe, empresária, estudante, e líder de um grupo de mulheres empreendedoras. Com uma rotina de trabalho que chega perto das 14 horas diárias, ela comanda um estúdio de muay thai, onde também dá aulas, administra o lar, cuida da filha Sofie, de dez anos, e ainda arruma tempo para a faculdade de educação física e o curso de inglês. Isso de segunda à sábado. Em meio a essa correria, a tatuagem de uma cruz de malta em seu antebraço chama a atenção. Próximo ao símbolo vascaíno, essa batalhadora gaúcha cravou na pele a data de 16.04.14, dia que mudaria os rumos da sua vida pelo esporte.

“Muita coisa aconteceu desde esse dia. Vi meu marido ‘morrer’ no gramado de São Januário e depois ser ressuscitado na ambulância. Foi a coisa mais desesperadora que presenciei”, disse Neiva, em entrevista por telefone ao Estadão.

Em 2014, Éverton Costa era um dos destaques do Vasco. Com um bom salário, ele vivia sua melhor fase na carreira e proporcionava uma vida confortável à mulher e aos três filhos. Mas essa realidade teve fim no dia 16 de abril daquele ano. Em um jogo contra o Resende, válido pela Copa do Brasil, o centroavante foi vítima de uma arritmia cardíaca e deixou o campo de ambulância e em estado crítico.

O fim da linha no futebol causou estragos não só financeiros, mas também emocionais na família. Neiva precisou de ajuda médica, entrou em depressão e engordou 15 quilos. De volta a Porto Alegre, o problema se agravou. Sem perspectiva e no fundo do poço, a prática do muay thai veio como uma válvula de escape. “Minha única motivação eram meus filhos. Chorava demais, tinha muita dor de cabeça, dificuldade de respirar, ansiedade. Uma amiga sugeriu uma luta para descarregar essa tristeza. Deu tão certo que virou profissão.”

FIM DE CASAMENTO

A relação com Éverton teve fim em meados de 2018 e para dar prosseguimento a sua nova face de empresária, outros embates tiveram de ser enfrentados. “Agora (a academia) está grande, mas no início foi complicado. Enfrentei preconceito no mundo das lutas por ser treinadora. Mas aí é a tal coisa: a gente trabalha dobrado, não tem problema. Em todas as profissões, a mulher está tomando o seu espaço. Até hoje sigo pronta para aprender, estou sempre fazendo cursos e seminários. O pouco que tenho, invisto no crescimento profissional. É uma capacitação em cima da outra. Até para a Tailândia eu fui para aperfeiçoar meu nível.”

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A então frágil dona de casa abriu uma pequena porta com apenas dois sacos de pancada e iniciou seu novo projeto. “Tive literalmente de ir à luta e fui me aperfeiçoando. Precisava queimar etapas, pois comecei a praticar muay thai com 40 anos. Assumi as contas da casa e minha rotina foi se diversificando entre tomar conta dos filhos, e também dar aulas.”

Neiva tem na caçula Sofie, fruto do relacionamento com Éverton, uma companheira inseparável. Como a academia funciona praticamente em três períodos, a filha segue a mãe quando não está no colégio. “Ela estuda no tatame, às vezes dorme por lá também. Já fizemos as refeições com roupas de treino no intervalo das aulas que ministro. A Sofie é minha auxiliar na turma infantil e ainda ganha um salário por mês. Isso acaba sendo muito divertido.”

EMPODERAMENTO

Além de batalhar pelo seu sustento exercendo uma atividade que também dá prazer, Neiva lidera um trabalho com um grupo de mulheres empreendedoras na cidade. “Vi a necessidade que temos de nos impulsionar num mundo que ainda é tão machista. Temos um grupo de WhatsApp onde eu coordeno as meninas. Comecei com as minhas alunas, vi que poderia ampliar e agora somos 250 mulheres. Tem desde a pequena empreendedora, aquela que faz pão artesanal para ajudar em casa, até a mulher que já tem comércio estabelecido. Fazemos feiras onde todas divulgam seus produtos. E na pandemia, essa iniciativa ajudou muita gente.”

A prática do sistema é simples, segundo Neiva. “O primeiro passo é fazer propaganda umas das outras no próprio grupo. Por exemplo, alguém pergunta quem vende sapato. Vai ter alguém no grupo que indica. Então quem trabalha com calçados manda as fotos com o preço dos itens e a negociação acontece no privado entre as partes envolvidas”, explica.

AMOR CRUZMALTINO

Apesar de respirar muay thai quase o dia inteiro, Neiva ainda guarda um lugar para o futebol. Gremista de nascença, a gaúcha acabou transferindo sua preferência clubística para o Vasco. “Foi muito intenso tudo o que vivemos no Rio. E por tudo que passamos, posso te dizer hoje que sou vascaina de coração.”

Muito dessa paixão pode ser medida também pelo sentimento de gratidão. E um nome em especial tem o seu carinho: o ex-atacante Roberto Dinamite, que foi presidente do clube carioca. “Olha, ele é especial demais. Se o Éverton está vivo hoje, foi por causa do cuidado que o Roberto (então presidente) teve naquele momento delicado. Ele nos deu o melhor médico, o melhor hospital e prestou toda a assistência necessária. Isso é uma coisa que não esqueço jamais. Mandei até uma mensagem no dia do aniversário dele na semana passada.”


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