Quando fala sobre a família que deixou no interior de Goiás, a voz sai até trêmula. “Estou carregando o sonho de outras pessoas que não conseguiram estudar”, diz Vanessa Paim, de 25 anos. Foi depois de muita insistência que a jovem pisou na Universidade de São Paulo (USP) pela primeira vez no ano passado para cursar Direito. A sensação de estar em uma das faculdades mais prestigiadas do País era uma mistura de euforia e receio. “Me senti um peixe fora d’água. Estava junto de filhos de juízes”, lembra.

Como muitos de seus colegas, Vanessa queria explorar a universidade, fazer cursos de idiomas e se candidatar para intercâmbio fora do País. Como poucos, logo surgiram dificuldades de moradia, transporte e falta de dinheiro até para os livros.

“Por várias vezes, desanimei. Tem hora que dá vontade de jogar as coisas para o alto”, diz a jovem, de família de origem negra e que desde a infância estudou em escolas públicas ou particulares com auxílio. Uma bolsa para apoiar seus estudos – paga por meio de doações de ex-alunos – deu fôlego aos sonhos. “Nunca pensei que alguém pudesse formular uma coisa dessas. Achei lindo.”

A exemplo do que há nos Estados Unidos, iniciativas em universidades brasileiras convocam antigos estudantes para “adotar” alunos pobres, como Vanessa, ajudando a bancar bolsas de permanência. Em um contexto de mudanças no perfil do ensino superior, com as cotas e programas de inclusão, os projetos querem dar a chance para que jovens escolham o caminho que querem seguir – sem o peso das cifras nos ombros.

Estudantes selecionados pelo projeto Adote um Aluno, da Faculdade de Direito da USP, recebem R$ 600 por mês, usados para custear materiais, inscrições em congressos e ingressos para atividades culturais. “É para ele se inserir neste ambiente que está sendo convidado a frequentar”, diz o diretor da faculdade, Floriano de Azevedo Marques Neto, idealizador da proposta, lançada em 2018. Ex-alunos podem arcar com valores de R$ 50 a R$ 1 mil mensais.

O desafio, diz Marques Neto, é criar uma cultura de doação na universidade e blindar a desconfiança sobre o destino dos recursos. Contra isso, um conselho fiscal, formado por um professor e advogados, é responsável por aprovar os gastos do projeto e prestar contas.

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Ex-aluno no Largo de São Francisco, Raphael Soré, de 31 anos, não conhece Vanessa, mas sua contribuição de R$ 300 mensais compôs a bolsa da jovem e de mais nove colegas em 2018. Este ano, o projeto expandiu para 15 o total de auxílios, após arrecadar R$ 72 mil. “Elas devem ter a oportunidade não só de entrar, mas de viver a experiência da faculdade por completo”, diz Soré, formado há nove anos. “Havia uma pecha de curso elitista – e era verdade. As pessoas que traziam diversidade eram exceções.”

Mudanças recentes no vestibular da Fundação Getulio Vargas (FGV) também trouxeram novos rostos à faculdade particular. Incomodados com o malabarismo que estudantes pobres tinham de fazer para concluir o curso, ex-alunos, pais e professores se mobilizaram para criar um fundo para bolsas de permanência. O Endowment Direito GV já juntou R$ 3 milhões – entre doações volumosas e outras simbólicas, como os R$ 15 pagos por uma secretária, da própria FGV, que apostou no projeto. Os rendimentos se convertem em pagamentos a estudantes e há até verba para apoio psicológico em caso de dificuldades de adaptação.

Diversidade. Com R$ 1 mil mensais que recebe, Stella Ferreira dos Santos, de 20 anos, se dedica ao curso integral na FGV e também encontra tempo para colocar jovens como ela em contato com a faculdade. “Participei do cursinho popular, em que os próprios alunos dão aulas, para que outros, de baixa renda, tenham oportunidade de entrar na FGV”, diz ela, a primeira mulher negra e bolsista a presidir o centro acadêmico.

Nos moldes da FGV e de outras experiências no câmpus, a Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP também criou, há dois anos, com apoio de ex-alunos, um fundo para apoiar ações de ensino, pesquisa e extensão, entre elas bolsas de permanência.

Com cotas pequenas de ajuda, o fundo da FEA mobiliza até alunos de graduação para que se tornem doadores habituais depois de formados. A poupança chegou a R$ 700 mil – a expectativa é alcançar mais antes de começar a usar os rendimentos.

Na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), doações de ex-alunos ainda engatinham, mas já ajudaram a pagar mensalidades de estudantes de diferentes cursos. Por lá, o critério de mérito acadêmico é associado à renda. “Consideramos se é arrimo de família, doenças graves (na família) e desemprego. A ideia é que o aluno tome um fôlego”, diz Ana Paula Maciel, consultora jurídica do fundo Ser PUC.

“É frustrante para a instituição que o aluno, que está indo bem, abandone o curso por não poder pagar”, diz Ana Paula. Recém-formada pela PUC, a advogada Teresa Ciardullo, de 26 anos, recebeu uma carta, com o convite para doar. Hoje, ela contribui com R$ 300 por semestre, que ajudam a custear estudos de alunos como Vitor Dal Poggetto, que quer ser médico (mais nesta pág.). “Dá R$ 50 por mês. Em São Paulo, o que é isso? Um almoço, praticamente.”

‘Comprei meu estetoscópio com a bolsa’

Depoimento: Vitor Dal Poggetto, de 24 anos, aluno de Medicina da PUC-SP

Passei em Medicina na PUC de Sorocaba pelo Fies com 75% (de financiamento) e a diferença, de R$ 1,5 mil por mês, meu irmão que pagava. A aprovação foi como se eu entrasse em outro momento difícil, porque não sabia como arcar com os gastos. O momento em que senti alívio foi quando consegui a bolsa (que custeou o restante da mensalidade). Foi como se ali eu finalmente tivesse passado no vestibular. Sempre passamos dificuldade em casa e essa ajuda foi muito boa. Medicina é um curso caro. Um estetoscópio custa R$ 600. O meu, só pude comprar quando consegui a bolsa.

Só em doações, Harvard recebeu o orçamento da USP


A cultura da filantropia nos Estados Unidos, estimulada por incentivos fiscais, levou a um recorde de US$ 46,7 bilhões (R$ 182 bilhões) a universidades de graduação e pós-graduação no ano fiscal de 2018. Os dados são do Conselho para Avanço e Suporte à Educação e mostram o aumento, pelo 9.º ano consecutivo, de doações a faculdades.

Do total, 26%, ou US$ 12,1 bilhões, vieram de ex-alunos. Ou, como são chamados nos corredores de universidades, os “alumni”. Desde antes da graduação, os universitários são estimulados a participar ativamente da comunidade de “alumni” após a diplomação e contribuírem, com cifras, com sua alma mater. No site da Universidade Harvard, por exemplo, é fácil localizar a página com informações para doações.

Só em doações, Harvard arrecadou em 2018 quase o orçamento da Universidade de São Paulo (USP) para 2019. Entre repasses do governo estadual, valores oriundos de recursos próprios e federais, a verba para 2019 da USP é de R$ 5,7 bilhões.

Harvard foi destino de 28% das doações a universidades dos EUA em 2018 e recebeu quantia perto de R$ 5,5 bilhões. Depois de Harvard, as maiores recebedoras são Stanford, Columbia, a Universidade da Califórnia em Los Angeles e em São Francisco e a Johns Hopkins, em Maryland.

Com deduções fiscais, são estimuladas doações a fundações, museus e faculdades. Mas uma reforma tributária aprovada pelo Congresso e encampada pelo presidente Donald Trump ameaça as cifras doadas.

A mudança não deixa de prever deduções na doação a faculdades, mas diminui o número de contribuintes elegíveis à dedução. Ainda não há dados disponíveis que meçam o efeito da legislação, em vigor desde 2018.

As universidades contam ainda com os presentes maiores: doações de ex-alunos que darão nome a um novo prédio, por exemplo, a ser construído, ou financiarão bolsas. Uma contribuição de US$ 2 milhões pode ajudar a construir um novo centro esportivo. O tamanho da doação para ter uma sala ou prédio com seu nome depende do tamanho da universidade.

Nem só de ex-alunos vivem as faculdades – e os universitários. Em maio, rodou o mundo o vídeo do bilionário que surpreendeu uma turma de mais de 400 alunos ao anunciar que pagaria as dívidas estudantis de todos os formandos. Nos EUA, estima-se que 40% dos que concluem a faculdade precisam pagar algum empréstimo do tipo.

Robert F. Smith, empresário com fortuna estimada em mais de US$ 4 bilhões, promete pagar cerca de US$ 40 milhões de dívidas dos alunos da Universidade de Morehouse, em Atlanta, historicamente composta por alunos negros. Smith, também negro, já havia anunciado doação de US$ 1,5 milhão à universidade este ano, mesmo tendo se formado em outras instituições: Cornell e Columbia.

Sem incentivo, lei de endowments pode virar letra morta

Doações a universidades americanas vão para fundos perpétuos, os endowments. No Brasil, embora já houvesse endowments nas universidades, não havia lei sobre esses fundos. Em janeiro, o presidente Jair Bolsonaro sancionou norma que regulamenta esses fundos, mas vetou, entre outros pontos, incentivos fiscais a doadores. Por isso, afirmam especialistas, a lei não ajuda a fomentar doações e pode burocratizar os processos.

“No Brasil, as pessoas têm medo de fazer algo novo sem uma lei”, diz Carlos Gouvêa, doutor em Harvard e professor da USP. Para ele, a cultura de doação, celebrada nos Estados Unidos, não vem do nada. Mecanismos transparentes de controle dos recursos, por exemplo, ajudam a dar segurança aos doadores. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.



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