Ao proferir, na década de 1950, sua célebre teoria de que o brasileiro sofre de um “complexo de vira-latas”, o jornalista, escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues nos classificou como um “Narciso às avessas”. Ao contrário do personagem da mitologia que se apaixona pelo seu próprio reflexo, o brasileiro, na visão de Nelson Rodrigues, teria ojeriza ao que vê no espelho. Ao final do périplo feito aos Estados Unidos na sua primeira viagem internacional, o presidente Jair Bolsonaro e sua trupe parecem ter elevado ao máximo o “complexo de vira-latas” proposto por Nelson Rodrigues. Num excesso de deslumbramento, encantado com a presença do ídolo Donald Trump, o Brasil cedeu muito e recebeu muito pouco de volta. A muitos, ficou parecendo que Bolsonaro subvertia seu próprio slogan de campanha, que prega: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. No caso da viagem a Washington, a tônica pareceu ser: “Estados Unidos acima de tudo”. “É uma viagem para ser esquecida”, resumiu o historiador Marco Antonio Villa, na quarta-feira 20. “As constantes juras de amor aos Estados Unidos foram patéticas. Pairou no ar um deslumbramento nunca visto”, acrescentou. Ao final dos compromissos em Washington, Bolsonaro anunciou uma série de benesses aos norte-americanos, mas as contrapartidas americanas ficaram no campo das ideias e das promessas vagas.

Clube dos ricos

Mesmo nos pontos em que se vislumbra mais vantagens ao Brasil, não houve por parte dos Estados Unidos qualquer formalização. Trump acenou com um apoio para que o Brasil passe a integrar a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A entrada poderá ser auspiciosa, elevando o Brasil a um papel mais elevado na negociação econômica internacional. Para muitos analistas da área econômica, pode conferir ao país um grau maior de confiabilidade e prestígio que atraia mais investimentos. Mas o apoio ainda não foi formalizado. E, caso venha a ser, cobra-se uma compensação que pode ser salgada e não trazer vantagens. Ao entrar para a OCDE, o Brasil se assumiria como parte do “clube dos países ricos”, abrindo mão, por exemplo, de vantagens concedidas a países em desenvolvimento nas negociações na Organização Mundial de Comércio (OMC).

Nos pontos em que se vislumbra vantagens ao Brasil, não houve por parte dos Estados Unidos qualquer formalização

Sem reciprocidade

Outro aceno importante de Trump foi no sentido de fazer o País integrar a Organização do Atlântico Norte (Otan). O Brasil poderia assim obter mais acesso à tecnologia e à cooperação norte-americana na área militar. Mas novamente foi somente um aceno não oficial. Sem o famoso preto no branco. E alinhavado com uma pressão quase explícita para que o Brasil apoiasse, em retribuição, uma intervenção norte-americana na Venezuela, algo que o meio militar brasileiro por enquanto rejeita.

“NOT HIM” Integrantes da comunidade brasileira em Washington protestam contra chegada de Bolsonaro à Casa Branca, no domingo 17 (Crédito:ERIC BARADAT)
ODE AO GURU Eduardo Bolsonaro chega ao local onde foi exibido um filme sobre Olavo de Carvalho, em Washington (Crédito:Marina Dias/Folhapress)

Gestos de generosidade gratuitos nem sempre geram reciprocidade no jogo de xadrez internacional. Na segunda-feira 18, foi publicado decreto no Diário Oficial da União dispensando a necessidade de visto para turistas dos Estados Unidos, Canadá, Austrália e Japão. Trump chegou a sinalizar com uma possibilidade de diminuir o rigor americano para conceder vistos a brasileiros, mas dificilmente os dispensará. Um dos pilares do discurso de Trump, fixado na ideia de construir um muro separando os Estados do México, é combater a migração ilegal. E muitos desses migrantes são brasileiros.

Um exemplo prosaico da diferença de mutualidade foi a troca de camisetas das seleções de futebol dos países. Bolsonaro entregou a Trump uma camisa número 10 com a personalização oficial usada pela Seleção Brasileiro. Trump correspondeu com a número 19 onde claramente se via que tanto o número como o nome do presidente brasileiro tinham sido colados depois, com etiquetas. A camisa 10 brasileira pertenceu a Pelé. Em 2018, num amistoso contra a França, quem envergava a camisa 19 dos EUA era Jorge Villafaña — um exemplar do “famoso quem” do futebol norte-americano.