O fenômeno da globalização não está restrito apenas ao espaço, mas também ao tempo. Só isso explica a presença nas paradas americanas, em pleno século 21, do álbum de um pianista chinês tocando a obra de um compositor alemão escrita em 1741. Esse milagre, que só a arte é capaz de proporcionar, é a versão de “Variações Goldberg” feita pelo pianista Lang Lang, a maior estrela da música erudita da atualidade. Apesar de já ser um artista consagrado, gravar a obra imortal de Johann Sebastian Bach eleva Lang Lang a outro patamar. “Estudo essa obra há mais de vinte anos. Essa gravação é o sonho de toda uma vida”, afirmou Lang Lang no lançamento. “É a peça mais criativa já composta para piano. É emocionante e alcança direto o coração. É possível mergulhar cada vez mais fundo em suas diferentes dimensões e sempre encontrar algo novo.”

OBSESSÃO Glenn Gould: perfeccionismo (Crédito:Divulgação)

A versão do pianista chinês vem dividindo a crítica, principalmente em relação à velocidade de algumas “Variações”. A partitura original de Bach, porém, não traz orientações sobre o andamento dos temas. Isso permite aos intérpretes que façam escolhas estilísticas de acordo com a sua visão da obra. Pode-se gostar ou não do álbum de Lang Lang, mas criticá-lo por se expressar contraria o próprio conceito original concebido por Bach.

“Variações Goldberg” é uma obra mítica não apenas pela dificuldade técnica de sua execução, mas pela aura que envolve as versões anteriores – em especial as gravações de Glenn Gould.

O canadense gravou a peça pela primeira vez em 1955, tornando-a imediatamente uma das obras mais populares da história da música erudita. Gould, porém, desenvolveu uma obsessão pelo perfeccionismo que o levou a abandonar os palcos em 1964, aos 32 anos. Em 1981, gravou em estúdio uma nova versão para as “Variações Goldberg”, diferente e tão fascinante quanto a primeira – e morreu no ano seguinte, aos 50 anos.

“Estudo essa obra há mais de vinte anos. É a peça mais criativa já composta para piano. Essa gravação é o sonho de toda uma vida.” Lang Lang, pianista

Obra mítica

Bach compôs a peça originalmente para cravo, um ancestral do piano, e há muitas histórias sobre sua origem. Johann Nikolaus Forkel, biógrafo do compositor, afirma que ela teria sido feita a pedido do conde Hermann Karl Von Keyserling durante uma visita a Leipzig, cidade onde Bach trabalhava como professor e diretor musical da Igreja de São Tomás. Como sofria de insônia, o conde teria pedido a Bach para compor uma obra que pudesse ser tocada por seu cravista, Johann Gottlieb Goldberg, de 14 anos, para ajudá-lo a dormir. Bach compôs então uma Ária, o tema principal, e outras 30 variações melódicas, que além da beleza artística também obedeciam a uma lógica matemática – quase um exercício para o jovem cravista.

A primeira gravação foi feita em 1933 por Wanda Landowska, ainda no cravo. No piano, a primeira versão foi do chileno Claudio Arrau, em 1942. Depois vieram nomes como Willhelm Kempff, András Schiff, Daniel Barenboim e Maria Yudina, a “Glenn Gould da Rússia”. É nessa lista de craques que entra o pianista brasileiro João Carlos Martins (leia entrevista à dir.), considerado até hoje um dos grandes intérpretes de Bach. O que apenas reforça a tese de que a obra do compositor alemão não pertence a alguma época ou a lugar, mas à eternidade e a todo o mundo.

LANÇAMENTO

“Bach: Goldberg Variations” Lang Lang. Deutsche Grammophon. Álbuns  em estúdio e ao vivo  na Igreja de São Tomás, Leipzig , Alemanha

ENTREVISTA
João Carlos Martins

“Lang Lang é um gênio”

Por que as “Variações Goldberg” são tão importantes?
Sob o ponto de vista de conceito musical, Bach chegou ao máximo nas Goldberg. Elas representam o auge da escrita musical, geometria, inspiração e, ao mesmo tempo, pura matemática.

O que achou da versão de Lang Lang?
Lang Lang é um gênio. Ele fez uma mistura de coisas que eu concordo. Ele coloca um Bach romântico e, de repente, um Bach geométrico. No Bach romântico entra a imaginação dele, o que ele acha que tem que destacar. No geométrico, sua técnica é espetacular. Se bem que a técnica o Glenn Gould tinha, eu tinha. Tocar tecnicamente perfeito não é opção, é obrigação.

Lang Lang pode ser considerado um dos grandes intérpretes dessa obra?
Acho que ele fez uma contribuição ao misturar sua individualidade com a personalidade de Bach. Respeito todo artista que pensa assim. O musicólogo tem que ouvir e dizer “não concordo, mas é de bom gosto”. Para quem não é familiarizado, basta ouvir e pensar “isso é bonito”. Quando Lang Lang toca, é bonito. Se ele exagera em algumas coisas, é da individualidade dele. Eu considero uma gravação tão histórica quanto a de Glenn Gould.

Divulgação

Por que Glenn Gould foi tão marcante?
Ele foi o maior gênio da arte interpretativa do século 20. Ele teve coragem de revolucionar. Mas foi tão fanático pelo perfeccionismo que não conseguiu mais se apresentar em público, só em estúdio. O jeito que ele tocava era muito diferente, debruçado, com o banco baixo. Esse perfeccionismo é perigoso, também prejudiquei minhas mãos por causa disso.

Por que há versões tão diferentes de uma mesma composição?
No começo do século 20, os intérpretes de Bach eram mais livres, como Ferruccio Busoni. Depois chegou uma escola mais ortodoxa. E aí veio o Glen Gould e quebrou todos os paradigmas. Quando Bach não coloca nenhuma indicação, ele dá direito, talvez fosse a intuição dele, para que a individualidade do intérprete pudesse se misturar com a personalidade do autor. É escolha estilística. A variação 5, por exemplo, o Glenn Gould e o Lang Lang tocam num andamento rápido, eu toco mais lento.

Qual seria a versão favorita de Bach?
Bach foi o maior gênio da improvisação. É mais fácil você encontrar um fóssil de um dinossauro de milhões de anos do que descobrir exatamente como Bach tocava as “Variações Goldberg”.