Vencedor de dois Oscars, o cineasta lamenta a onda de conservadorismo na Europa e nos EUA e diz que Brasil e Espanha vivem uma crise de lideranças

O espanhol Pedro Almodóvar ganhou projeção nos anos 1980 com filmes que celebravam a liberdade de expressão e sexual. Acostumado a capturar o estado de ânimo de seu país nas telas, o diretor registra, em seu mais recente longa, “Julieta” (que estreia no Brasil em 7 de julho), uma Espanha triste. Ele diz que a história de mãe torturada pela ausência da filha, que fugiu de casa, é reflexo do fracasso político de seu país. Os espanhóis estão sem governo desde as eleições de dezembro, por nenhum partido ter apoio suficiente no Parlamento para governar. “Sou solidário com o que acontece no Brasil por estarmos enfrentando uma fase difícil parecida, de incertezas”, disse o cineasta de 66 anos, vencedor de dois Oscars: de melhor filme estrangeiro com “Tudo Sobre Minha Mãe’’ (1999) e de roteiro com “Fale Com Ela” (2002). Em entrevista à ISTOÉ, concedida durante a 69ª edição do Festival de Cannes, ele falou de sua decepção com o sistema democrático, lamentou o avanço da direita no mundo e disse ser apenas um figurante no caso Panama Papers, investigação sobre recursos investidos em paraísos fiscais.

ISTOÉ – O sr. vê paralelos entre a crise política brasileira e a espanhola?

Pedro Almodóvar – Acho que compartilhamos com os brasileiros a sensação de frustração. Nós, espanhóis, votamos nas eleições, mas os partidos não foram capazes de atender os desejos dos cidadãos, dando forma a um governo. No Brasil, vocês também passam por uma fase de transição. Nos dois casos, acho que o cidadão sente uma enorme decepção com o próprio sistema democrático. Claro que não existe regime político melhor. Mas é triste constatar que a democracia não resolve os problemas. Ela é ainda muito imperfeita.

ISTOÉ – Além de crise política, vivemos uma crise de liderança?

Almodóvar – Sim, o que deixa tudo ainda mais perigoso. Nos momentos de crise, a política é ainda mais necessária. O problema é que os políticos não estão à altura dos cargos que ocupam. No caso da Espanha, como ter esperança sabendo que as pessoas encarregadas de definir o futuro do país são as mesmas que já se mostraram incapazes de formar um governo após as eleições gerais no ano passado? De que adianta termos novas eleições (marcadas para o domingo 26), se os candidatos são os mesmos? Houve muito poucos ajustes nos programas do Partido Popular (PP), do Podemos, do Partido Social Operário Espanhol (Psoe) e do Cidadãos (C’s). Parece a repetição de um jogo que já vimos.

ISTOÉ – Como o Brasil, a Espanha também parece estar desgastada por escândalos de corrupção.

Almodóvar – Sim. Na última década, o número de escândalos de corrupção só cresceu na Espanha. E o que é pior: eles são descobertos e denunciados, mas parecem que nunca chegam a ser resolvidos completamente. Temos a sensação de que cada caso dura uma eternidade. Eu me pergunto se a crise econômica da qual a Espanha sofre desde 2007 é crise mesmo ou se foi agravada com tanta corrupção e mau uso do dinheiro público.

ISTOÉ – Como o sr. vê o crescimento dos partidos de direita na Europa?

Almodóvar – Estou aterrorizado com o avanço da direita. Não tenho filhos, mas, se tivesse, ficaria preocupado com o destino deles, por temer um futuro atroz para o mundo.

ISTOÉ – Nos Estados Unidos, o magnata Donald Trump conquistou um espaço inesperado na campanha presidencial.

Almodóvar – Não quero sequer pensar na possibilidade de Donald Trump chegar à Casa Branca, pelo retrocesso que ele representa. A situação é preocupante no mundo todo. Nunca imaginei que manifestações contra o casamento gay e contra o aborto pudessem arrastar tanta gente na França. Para nós, espanhóis, a decepção com a França é ainda maior.

ISTOÉ – Por quê?

Almodóvar – Os franceses têm um problema gravíssimo para resolver. Na Espanha, não temos um índice de crescimento tão significativo da direita. E digo direita civilizada. Não a extrema-direita da França, onde a Frente Nacional (FN), de Marine Le Pen, promete representar um perigo real na eleição presidencial de 2017. O país sempre foi um modelo de sociedade laica, além de ter sacudido os valores antigos com a revolta de maio de 1968. É uma pena constatar que a França não é o país que eu pensava. Tenho a sorte por ter crescido rodeado de mulheres que me inspiraram com sua força e me ensinaram a não ter preconceitos.

ISTOÉ – O sr. e o seu irmão foram citados como beneficiários do escândalo Panama Papers (recursos aplicados ilegalmente em paraísos fiscais)? O sr. cometeu alguma ilegalidade?

Almodóvar – Repito o que nós temos falado desde abril. Eu e o meu irmão fomos aconselhados a abrir uma empresa offshore para facilitar as negociações de filmes internacionais e as coproduções com outros países, na época anterior ao euro. A intenção nunca foi evitar os impostos. Somos as pessoas menos importantes da lista, ainda que os veículos de comunicação tenham nos dado papel de protagonista. Sou contra os paraísos fiscais.

ISTOÉ – Seus filmes refletem o momento político pelo qual a Espanha passava. Se “A Lei do Desejo” e “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos” retratavam a extravagância do país recém-saído da ditadura militar, o que “Julieta” diz da Espanha atual?

Almodóvar – O filme representa um país triste, solitário e carregado de dor. Jamais poderia ter filmado “Julieta” nos anos 1980 ou 1990. Os tempos mudaram e eu também mudei. Enquanto minhas primeiras personagens saíam para a rua, para aproveitar a vida, Julieta é reclusa, passando quase todo o tempo em casa. Comparado aos anos de euforia, hoje sou mais introspectivo. Conforme o tempo passa, ele também se encarrega de trazer a nossa cota de dor, da qual ninguém escapa.

ISTOÉ – “Julieta” é o seu filme mais econômico no que diz respeito às emoções? Isso também é resultado da experiência adquirida?

Almodóvar – Para chegar a este nível de contenção, é preciso experiência. Não só experiência de vida, mas profissional. Por ser o meu 20° filme, eu me sinto mais maduro como diretor. Reduzir os elementos é muito mais difícil do que parece. Precisei usar planos simples, em que os atores faziam poucos movimentos, apostando tudo o que tinha em uma cartada só. O cuidado foi muito mais minucioso, para garantir que a cena tivesse força dramática, ainda que ninguém pudesse chorar.

ISTOÉ – Incomoda o fato de a crítica ter se surpreendido com a abordagem contida de “Julieta”, como se ela soubesse mais que o sr. como deve ser uma obra de Almodóvar?

Almodóvar – O peso de ser quem sou só existe quando termino o filme e não durante a roteirização ou filmagem. Tomo as decisões com liberdade, sem considerar o mercado ou o espectador. Os fantasmas só aparecem na sala de edição. É nessa fase que começo a ter medo. Há sempre uma comoção no lançamento de meus filmes, o que não é bom, por aumentar as expectativas. Preferiria que o público assistisse a meus filmes mais relaxadamente, para poder avaliá-lo apenas pelo que ele é.

ISTOÉ – O sr. diria que compreende melhor a vida por fazer cinema?

Almodóvar – Entendo melhor a mim mesmo. Obviamente, os meus personagens vão muito além de mim, embora eu esteja em todos eles. Muitas vezes os meus filmes representaram espécies de premonição, antecipando situações com as quais vou me deparar algum tempo depois.

ISTOÉ – Pode dar um exemplo?

Almodóvar – Antes de “Mulheres”, eu não havia jogado um telefone na parede (risos). A culpa que Julieta carrega, por ter fracassado como mãe, também ecoou em mim. Achei que já tinha superado a culpa pela criação católica que recebi, mas não cheguei lá ainda. Por mais que eu tenha uma abordagem laica, sem pensar em céu ou inferno, passei a pensar no que fiz de errado, com quem fiz e como poderia assumir a responsabilidade e remediar.

ISTOÉ – Por que o sr. sempre diz não querer que escrevam a sua biografia?

Almodóvar – Não penso em mim, mas nas pessoas que me rodeiam e que fazem e fizeram parte da minha intimidade. Seria injusto que eles também fossem biografados. Por eu nunca ter falado abertamente das minhas relações, como o biógrafo poderia saber? Sempre fui muito discreto nesse sentido. Claro que nunca escondi os aspectos mais importantes de minha vida, como ser homossexual e ser de esquerda. Mas os detalhes não interessam a ninguém. Além disso, o gênero biográfico não me agrada. Há uma grande limitação ao tentar reproduzir algo que aconteceu. Não quero biografia e muito menos ver o tal livro transformado em filme.

ISTOÉ – Qual a sua lembrança mais marcante do Brasil?

Almodóvar – Estive várias vezes na Bahia, hospedado na casa de Caetano Veloso. Foi lá que escrevi o roteiro de “Tudo Sobre Minha Mãe”. Também estive no Rio, onde Caetano me apresentou a Regina Casé e Bebel Gilberto, que hoje também são minhas amigas. Fiquei impressionado com as escolas de samba no Rio. Senti como se eu testemunhasse a origem do ritmo, de um modo mais ancestral.